Ibsen e “Um inimigo do povo”.
A verdade contrariada transforma-se em mentira?
Razão e boa-fé desembocam no justo?
Paulo Abrão
Vou dedicar toda a minha energia e a minha
vida a contestar
a pseudoverdade de que a voz do povo é a voz
da razão.
(Fala do Dr. Stockmann no Inimigo do povo, texto de 1882)
Compreender o mundo nunca é uma questão de
apenas registrar nossas
percepções imediatas. A compreensão
inevitavelmente envolve o uso da razão.
(Amartya Sem)
Este texto tem muitas perguntas, talvez por ser fruto do arrependimento
do pouco a que me propus escrever diante da envergadura da empreitada. Nunca me
senti confortável diante dela. Ao contrário, a reflexão e o sofrimento
intelectual diante de tantas possibilidades por caminhos que não sei se bem
conheço me fazem (re)pensar que o óbvio momentâneo visto com o olhar do
presente para entender o futuro necessita buscar na tradição o
“... fio que nos guiou com
segurança através dos vastos domínios do passado; (...) Poderia ocorrer que
somente agora o passado se abrisse a nós com uma inesperada novidade e nos
dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir”. (Entre o passado e o futuro, p. 130).
Não me atrevo a escrever que ouvi novidade inesperada do passado, mas
posso dizer que mudei o que sou agora no presente depois de refletir a partir
dos elementos que o passado me forneceu. E nisso, faço um tributo a Bernardina
Furtado, amada companheira que há mais de vinte anos me ouve e pondera
cirurgicamente o que não consigo ver nas minhas voláteis reflexões. Ela
colaborou para a criação deste texto. Por quê? Ora, além de nossas conversas e
interlocuções à mesa... tempos atrás fizemos uma espécie rústica de “laboratório”,
se é que assim podemos dizer, para – depois de colhidas nossas impressões e
percepções com o uso da razão – buscar elementos que me ajudassem a escrever
este texto.
Estávamos num local público onde ocorria um evento para o qual fôramos
convidados. Era um parque, num sábado ensolarado, e as pessoas deveriam levar
lanches para um piquenique, almofadas ou banquetas para se sentar, e panos para
cobrir a grama, necessários para o objetivo do evento: um festival de poesia ao
ar livre. Bermudas, sandálias, shorts, camisetas, cangas, sacolas com
mantimentos, bonés eram vistos por todo lado. Mas fomos trajados para aquele encontro com
nossas roupas que normalmente usamos em nosso cotidiano de trabalho de
advogados e professores.
Fizemos mais!
Havia um ambiente que levava o evento a uma análise favorável por parte
dos participantes, com expressões do tipo “que ideia ótima”, “que lugar agradável”,
“que ambiente fraterno, de amizade, de encontro”, “vocês não estão adorando? ”.
Estávamos sérios, e eram raros nossos sorrisos.
Em verdade, todos ali presentes – diríamos quase todos – estavam
imbuídos de um fraterno e solidário espírito de companheirismo e uma visão antecipadamente
favorável para aquela atividade. Éramos indagados sobre o evento e respondíamos
que não gostávamos daquilo e que achávamos aquela situação extremamente
cansativa, penosa. Opusemos contrariedade ao senso comum ali desenhado para
analisarmos as reações das pessoas em relação à nossa postura e ao nosso
comportamento.
Bem, as conclusões guardamos, mas vivenciamos o que sente alguém que
discorda de algo que é aceito pelo coletivo como bom, e naquele caso específico
intelectualmente necessário à evolução da sensibilidade e do resgate humano das
relações interpessoais.
Não que houvesse ali uma pseudoverdade, como da primeira epígrafe deste
texto, mas o estranhamento que causamos criou nas pessoas as mais variadas
reações: descaso, explicações, justificativas pessoais, enfim, quem éramos nós
que estávamos ali, aceitáramos o convite, mas nos comportávamos e nos vestíamos
diferentes de todos? Como lidar com o olhar incisivo da crítica, às vezes do
despreparo, da surpresa daqueles que coletivamente aceitaram o evento como algo
importante para a vida deles? Fomos merecedores, aparentemente, do total
descaso.
Éramos, ali, “inimigos do povo”.
O texto de Um inimigo do povo
A personagem Dr. Stockmann é médico. Mora numa cidade da Noruega que é
uma estação balneária, muito frequentada no verão, e que tem como prefeito seu
irmão. O balneário – ideia e projeto do doutor para melhorar a cidade – é fonte
de renda e gera muitos empregos, fazendo circular a riqueza. Mas o Dr. Stockmann,
desde o último verão, desconfia da qualidade da água utilizada tanto nos banhos
quanto para ingestão, já que verificara, ele mesmo, casos de tifo e febres
gástricas que pensava, no início, terem sido trazidos pelos próprios turistas
de suas regiões. Recolheu amostras da água e enviou para a Universidade, “para que fosse feita uma análise rigorosa
pelos químicos”. (p. 31). Tempos depois – na primavera seguinte, véspera da
chegada dos turistas no verão – chega uma carta pelo correio com o resultado
das análises solicitadas. O Dr. Stockmann declara a um grupo de pessoas em sua
casa:
(Mostrando a carta). Aqui estão! Encontraram na água a presença de substâncias orgânicas em
decomposição. Está cheia de infusórios, que são detritos de animais decompostos.
O uso dessa água, quer interno, quer externo, é absolutamente prejudicial à
saúde. (p.31)
Depois da confirmação da contaminação, a empreitada do doutor será
remediar, pela gravidade do fato, toda a canalização que levava água ao
balneário, já que a captação do líquido foi feita próxima a lençóis freáticos
poluídos em grande parte pelo curtume de seu sogro. Imaginava o médico que, ao
compartilhar a informação com a população, com os políticos e com o prefeito
seu irmão, traria alívio a todos, já que o balneário, como se encontrava,
representava um perigo certo aos frequentadores e aos moradores.
Desnecessário dizer que a saúde pública ficaria relegada a segundo
plano e as pressões econômicas e políticas tornariam a vida da família
Stockmann um verdadeiro inferno.
O prefeito, em muitos momentos do texto, principalmente depois da
notícia de que o balneário era um risco à saúde humana, lembra ao Dr. Stockmann
que ele é o médico-empregado do balneário, e que ele, prefeito, arrumara-lhe o
emprego para melhorar a situação econômica da família. Até confessa que agiu no
seu próprio interesse para ter alguma influência sobre o médico.
O Dr. Stockmann, na visão do irmão, era irascível, subversivo, e
criticava as autoridades do governo. Mas como fizera o projeto inicial do
balneário, suportava sua presença.
O prefeito irmão, na visão do médico, era individualista e só tinha
objetivos econômicos e queria ter dividendos políticos com a estação balneária.
Além disso, fez a obra em desacordo com o projeto, modificada quando de sua
construção; o prefeito e o povo, agora, pagariam o preço da ganância e da incompetência
de um grupo de pessoas.
Um clima constante de tensão durante os diálogos marca posicionamentos
cada vez mais distantes da verdade-notícia trazida pelo Dr. Stockmann:
comerciantes, políticos, imprensa e a população veem no médico, apesar de sua
honradez, um crítico contumaz dos que detêm o poder na cidade, e que, além
disso, tinha um grande defeito: dava mais ouvidos à emoção do que à razão.
Todo esse imbróglio leva a questão a uma reunião, uma “grande
assembleia, na qual estão representados todos os segmentos da sociedade local”.
(p.105). Essa assembleia acaba por trazer um posicionamento do Dr. Stockmann
que surpreende a todos. Vale a reprodução do trecho:
DR.
STOCKMANN - Muito bem, caros concidadãos. Nada mais direi sobre nossos
governantes. Não pretendo criticá-los mais, dizer-lhes mais e mais verdades,
não, não mesmo! Quem julgar que estou aqui para desabafar meu inconformismo
contra estes senhores está enganado. Estou certo de que todos estes
reacionários, todos esses velhos destroços de um mundo que está desaparecendo
terão o seu fim natural, cedo ou tarde. Não precisaremos apressar seu
desaparecimento, pois eles acabarão por si mesmos. Não é tampouco essa gente
que constitui o perigo mais iminente para a sociedade. Não, não são eles os
mais perigosos destruidores das forças progressistas, nem são eles os mais
perigosos inimigos da verdade e da liberdade!
GRITOS
POR TODOS OS LADOS – Quem são? Quem são? Diga!
DR.
STOCKMANN – Sim, podem ficar descansados, eu direi! Foi esta justamente a
grande descoberta que fiz ontem (Alteando a voz) O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade, entre nós, é a
enorme e silenciosa maioria dos meus concidadãos. Esta massa amorfa, é ela!
Sim, agora já o sabem.
[Grande alvoroço. A maioria dos
assistentes grita, sapateia, assobia. Ruído formidável na sala. Alguns mais
velhos parecem aprovar com olhares divertidos (...)]
ASLAKSEN
– O presidente exige que o orador retire as expressões impróprias e ditas
impensadamente!
DR.
STOCKMANN – De modo algum, Sr. Aslaksen. Não é a grande maioria da nossa
população que me priva da liberdade e me impede de dizer a verdade?
HOVSTAD
– A maioria sempre tem razão!
BILLING
– A maioria sempre tem razão!
DR.
STOCKMANN – Não! Maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já
se disse! Todo o cidadão livre deve protestar contra ela. Quem se constitui na maioria
dos habitantes de um país? As pessoas inteligentes ou os imbecis? Estamos todos
de acordo, penso eu, em afirmar que, em se considerando o globo terrestre como
um todo, os imbecis formam uma maioria esmagadora. Este é um motivo suficiente
para que os imbecis mandem nos demais. (Gritos, berros, protestos). Sim, vocês podem gritar mais alto do que
eu, mas não podem me responder. A maioria tem o poder, infelizmente! Mas não
tem razão! A razão está comigo e do lado de alguns indivíduos isolados. O
direito está sempre com as minorias. (Tumulto total) (pp.118-120)
Bem, a sequência dos fatos enredará cada vez mais o médico.
Por exemplo, seu sogro comprará todas as ações do balneário por estarem
em baixa, valendo muito pouco. Isso faz com que seja procurado pelo dono do
jornal e por seu impressor que afirmam que a informação de que o balneário
estava com a água poluída beneficiaria ao sogro e a ele, pois os dois teriam um
lucro enorme a ser obtido pela venda das ações quando da finalização da reforma
que traria água em condições ideais para o banho e para o consumo. Propõem que
o médico faça uso do jornal para reafirmar seu posicionamento, mas que depois
divida o lucro da venda das ações com eles. Incrédulo com o que ouve, Dr.
Stockmann percebe que está só – ou quase só – depois de todos os
acontecimentos.
A verdade como fato e/ou estratégia e a
injustiça como consequência.
Apesar de estar ao lado de fatos que indicavam que o balneário era
perigoso à saúde pública e agir de boa-fé, o Dr. Stockmann foi visto:
- por
dois cidadãos da cidade (dono do jornal e dono da gráfica), como um excelente
estrategista, que utilizou fatos reais para ganhar dinheiro com as ações da
estação balneária, via seu sogro; e
- pela
maioria da população como um inimigo que tentou tirar da cidade o seu
ganha-pão.
Utilizando de maneira superficial parte da reflexão de Amartya Sen na
sua obra A ideia de justiça, a
leitura que o Dr. Stockmann fez da situação, quando descobriu que a água
utilizada no balneário estava poluída, teria indicado a ele os caminhos
possíveis que enfrentaria, dentre eles ficar sozinho e abandonado na empreitada
que agora assumiria?
Confiou o doutor em suas percepções e impressões, antevendo possíveis injustiças
que sofreria por parte da maioria das pessoas? E quando percebeu essa injustiça
diante de seu posicionamento, isso serviu como um sinal que demandaria um exame
crítico e cuidadoso da validade de sua ação e estratégias?
Sentiu-se culpado por ter seguido em frente e ter sido responsável pelas
inverdades e discriminação lançadas sobre sua mulher e seus filhos, numa
espécie de “efeito colateral” desse seu agir. Seguir em frente, mesmo por
razões baseadas na ciência e no seu senso de justiça, fez com que sua ação
tenha servido de estratégia política a um outro grupo? Ou a si próprio? O uso
da razão e o “seguir em frente” fortaleceu cada vez mais seu posicionamento? A
estratégia desmascarada pelo dono do jornal (e que ficaria oculta) seria verdade,
e o povo jamais saberia o que de fato aconteceu?
Ibsen devia ter as respostas, mas as guardou, e deixou ao nosso
arbítrio a conclusão.
Se imaginarmos que o Dr. Stockmann fosse levado a julgamento por crime
contra o sistema econômico, fraude junto à Bolsa de Valores, com o argumento de
que se locupletaria de forma ilícita com o dinheiro obtido com a venda das
ações depois da reforma do balneário, seria de se supor que a verdade estaria
encoberta pelo manto da mentira, da fraude, e que a ação judicial proposta para
o condenar não tivesse êxito. Porém, no Direito, o uso da razão do juiz ao
decidir – aplicação da lei ao caso concreto –, deve (ou deveria) separar o joio
do trigo com base no processo, e então julgar (krisis, em latim) para atingir um ideal de justiça.
Ao analisarmos julgamentos famosos, polêmicos, no Brasil e no mundo,
quantos deles são feitos a partir de fatos que se transmutam pela mídia e ganham
pressão social pela silenciosa, enorme e imbecil maioria dos concidadãos, que
seriam, segundo o Dr. Stockmann “O
inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade...”?
Seguir em frente: razão e boa-fé a serviço
de nossos objetivos
O uso da razão, aliado à boa-fé, pode nos trazer exemplos variados de
consequências imprevistas, ou previstas, mas de consequências incalculáveis. É
o que em Direito se costuma nomear como Teoria da Imprevisão. Trago dois
exemplos que sinalizam como posturas de um ou outro lado, como opressor e oprimido,
forte e fraco, dentre outros nos levam a refletir como agimos.
Lembremos como referências, que
(i)
Oppenheimer, “...
que liderou a equipe americana que desenvolveu a bomba atômica durante a
Segunda Guerra Mundial, citava comovido as palavras de Krishna no Gita (‘Eu me
tornei a morte, o destruidor dos mundos’), ao assistir, em 16 de julho de 1945,
à força assombrosa da primeira explosão nuclear causada pelo homem. (...)
Oppenheimer, o ‘físico’, encontrou justificação, naquela época, em seu
compromisso técnico de desenvolver uma bomba para o que era claramente o lado
justo” (A ideia de justiça, p.245); ou
(ii)
o programa de desnazificação conduzido pelos
aliados depois da Segunda Guerra Mundial para remover todos os vestígios de
nazismo da sociedade alemã. “Frente a tal
circunstância, os musicólogos sentiram-se impelidos a minimizar todos os
avanços feitos graças ao regime nazista, ao mesmo tempo que esperavam assegurar
a continuação dos empreendimentos musicológicos engendrados pelo apoio nazista”
(A mais alemã das artes, p.
384)
Os dois casos nos ajudam a refletir.
No primeiro, o físico, imbuído de seu compromisso técnico com a
ciência, aprofundou seus estudos e conhecimentos que redundaram na criação de
uma bomba com poder de destruição impressionante; no segundo, parte dos músicos
alemães, diante dos objetivos nazistas do Estado e para escapar da perseguição
política e racial, “... poderiam
encontrar na agenda cultural nazista aspectos de convergência com suas próprias
crenças” (A mais alemã das artes,
p. 47)
Neles a razão guiou a ação dessas pessoas.
Para o físico, a magnitude da destruição fruto do trabalho foi
justificada posteriormente pelo justo motivo do lado da guerra: o dos
aliados; já em relação aos músicos (e talvez também), a estratégia se aliou à
razão pelo instinto de sobrevivência. A culpa lhes transpassou o corpo, mesmo
que a razão os tenha feito refletir que o “seguir em frente” tenha sido
fundamental.
O estranhamento que nos causa é que essas afirmações possas ser
duvidosas, já que a ação verdadeira seria fruto daquilo que interiormente
consideramos verdade. Afinal no agir/ser verdadeiro podemos incluir a luta pela
sobrevivência mesmo com ações que aparentemente “fujam” do dever-ser.
De relance, ao fazermos uma anamnese, um olhar que nos remeta ao
passado a partir do presente, analisando o uso de nossa razão e o nosso seguir
em frente, o que encontraremos: Dr. Stockmann, o Prefeito, o físico ou os
músicos? Quem nos julga além de nós mesmos?
Edições utilizadas: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. (Trad. Mauro W. Barbosa). São Paulo. Perspectiva. 2007; IBSEN, Henrik. Um inimigo do povo. (Trad. Pedro Mantiqueira). Porto Alegre. L&PM. 2001; PORTER, Pamela M. A mais alemã das artes. (Trad. Rainer Patriota). São Paulo, Perspectiva, 2015. SEN, Amartya. A ideia de justiça (Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes). São Paulo. Companhia das Letras, 2011. Crédito da imagem: <https://www.kobo.com/br/pt/ebook/um-inimigo-do-povo>. Acesso em: 28 mar. 2021.