28/03/2021

Um inimigo do povo, Ibsen

Ibsen e  “Um inimigo do povo”.

A verdade contrariada transforma-se em mentira?

Razão e boa-fé desembocam no justo?

 

Paulo Abrão

 

 

Vou dedicar toda a minha energia e a minha vida a contestar

a pseudoverdade de que a voz do povo é a voz da razão.

(Fala do Dr. Stockmann no Inimigo do povo, texto de 1882)

 

 

 

Compreender o mundo nunca é uma questão de apenas registrar nossas

percepções imediatas. A compreensão inevitavelmente envolve o uso da razão.

(Amartya Sem)

 

 

 

Este texto tem muitas perguntas, talvez por ser fruto do arrependimento do pouco a que me propus escrever diante da envergadura da empreitada. Nunca me senti confortável diante dela. Ao contrário, a reflexão e o sofrimento intelectual diante de tantas possibilidades por caminhos que não sei se bem conheço me fazem (re)pensar que o óbvio momentâneo visto com o olhar do presente para entender o futuro necessita buscar na tradição o

 

“... fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado; (...) Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com uma inesperada novidade e nos dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir”. (Entre o passado e o futuro, p. 130).

 

Não me atrevo a escrever que ouvi novidade inesperada do passado, mas posso dizer que mudei o que sou agora no presente depois de refletir a partir dos elementos que o passado me forneceu. E nisso, faço um tributo a Bernardina Furtado, amada companheira que há mais de vinte anos me ouve e pondera cirurgicamente o que não consigo ver nas minhas voláteis reflexões. Ela colaborou para a criação deste texto. Por quê? Ora, além de nossas conversas e interlocuções à mesa... tempos atrás fizemos uma espécie rústica de “laboratório”, se é que assim podemos dizer, para – depois de colhidas nossas impressões e percepções com o uso da razão – buscar elementos que me ajudassem a escrever este texto.

Estávamos num local público onde ocorria um evento para o qual fôramos convidados. Era um parque, num sábado ensolarado, e as pessoas deveriam levar lanches para um piquenique, almofadas ou banquetas para se sentar, e panos para cobrir a grama, necessários para o objetivo do evento: um festival de poesia ao ar livre. Bermudas, sandálias, shorts, camisetas, cangas, sacolas com mantimentos, bonés eram vistos por todo lado.  Mas fomos trajados para aquele encontro com nossas roupas que normalmente usamos em nosso cotidiano de trabalho de advogados e professores.

Fizemos mais!

Havia um ambiente que levava o evento a uma análise favorável por parte dos participantes, com expressões do tipo “que ideia ótima”, “que lugar agradável”, “que ambiente fraterno, de amizade, de encontro”, “vocês não estão adorando? ”. Estávamos sérios, e eram raros nossos sorrisos.

Em verdade, todos ali presentes – diríamos quase todos – estavam imbuídos de um fraterno e solidário espírito de companheirismo e uma visão antecipadamente favorável para aquela atividade. Éramos indagados sobre o evento e respondíamos que não gostávamos daquilo e que achávamos aquela situação extremamente cansativa, penosa. Opusemos contrariedade ao senso comum ali desenhado para analisarmos as reações das pessoas em relação à nossa postura e ao nosso comportamento.

Bem, as conclusões guardamos, mas vivenciamos o que sente alguém que discorda de algo que é aceito pelo coletivo como bom, e naquele caso específico intelectualmente necessário à evolução da sensibilidade e do resgate humano das relações interpessoais.

Não que houvesse ali uma pseudoverdade, como da primeira epígrafe deste texto, mas o estranhamento que causamos criou nas pessoas as mais variadas reações: descaso, explicações, justificativas pessoais, enfim, quem éramos nós que estávamos ali, aceitáramos o convite, mas nos comportávamos e nos vestíamos diferentes de todos? Como lidar com o olhar incisivo da crítica, às vezes do despreparo, da surpresa daqueles que coletivamente aceitaram o evento como algo importante para a vida deles? Fomos merecedores, aparentemente, do total descaso.

Éramos, ali, “inimigos do povo”.

 

O texto de Um inimigo do povo

 

A personagem Dr. Stockmann é médico. Mora numa cidade da Noruega que é uma estação balneária, muito frequentada no verão, e que tem como prefeito seu irmão. O balneário – ideia e projeto do doutor para melhorar a cidade – é fonte de renda e gera muitos empregos, fazendo circular a riqueza. Mas o Dr. Stockmann, desde o último verão, desconfia da qualidade da água utilizada tanto nos banhos quanto para ingestão, já que verificara, ele mesmo, casos de tifo e febres gástricas que pensava, no início, terem sido trazidos pelos próprios turistas de suas regiões. Recolheu amostras da água e enviou para a Universidade, “para que fosse feita uma análise rigorosa pelos químicos”. (p. 31). Tempos depois – na primavera seguinte, véspera da chegada dos turistas no verão – chega uma carta pelo correio com o resultado das análises solicitadas. O Dr. Stockmann declara a um grupo de pessoas em sua casa:

 

(Mostrando a carta). Aqui estão! Encontraram na água a presença de substâncias orgânicas em decomposição. Está cheia de infusórios, que são detritos de animais decompostos. O uso dessa água, quer interno, quer externo, é absolutamente prejudicial à saúde. (p.31)

 

Depois da confirmação da contaminação, a empreitada do doutor será remediar, pela gravidade do fato, toda a canalização que levava água ao balneário, já que a captação do líquido foi feita próxima a lençóis freáticos poluídos em grande parte pelo curtume de seu sogro. Imaginava o médico que, ao compartilhar a informação com a população, com os políticos e com o prefeito seu irmão, traria alívio a todos, já que o balneário, como se encontrava, representava um perigo certo aos frequentadores e aos moradores.

Desnecessário dizer que a saúde pública ficaria relegada a segundo plano e as pressões econômicas e políticas tornariam a vida da família Stockmann um verdadeiro inferno.

O prefeito, em muitos momentos do texto, principalmente depois da notícia de que o balneário era um risco à saúde humana, lembra ao Dr. Stockmann que ele é o médico-empregado do balneário, e que ele, prefeito, arrumara-lhe o emprego para melhorar a situação econômica da família. Até confessa que agiu no seu próprio interesse para ter alguma influência sobre o médico.

O Dr. Stockmann, na visão do irmão, era irascível, subversivo, e criticava as autoridades do governo. Mas como fizera o projeto inicial do balneário, suportava sua presença.

O prefeito irmão, na visão do médico, era individualista e só tinha objetivos econômicos e queria ter dividendos políticos com a estação balneária. Além disso, fez a obra em desacordo com o projeto, modificada quando de sua construção; o prefeito e o povo, agora, pagariam o preço da ganância e da incompetência de um grupo de pessoas.

Um clima constante de tensão durante os diálogos marca posicionamentos cada vez mais distantes da verdade-notícia trazida pelo Dr. Stockmann: comerciantes, políticos, imprensa e a população veem no médico, apesar de sua honradez, um crítico contumaz dos que detêm o poder na cidade, e que, além disso, tinha um grande defeito: dava mais ouvidos à emoção do que à razão.

Todo esse imbróglio leva a questão a uma reunião, uma “grande assembleia, na qual estão representados todos os segmentos da sociedade local”. (p.105). Essa assembleia acaba por trazer um posicionamento do Dr. Stockmann que surpreende a todos. Vale a reprodução do trecho:

 

DR. STOCKMANN - Muito bem, caros concidadãos. Nada mais direi sobre nossos governantes. Não pretendo criticá-los mais, dizer-lhes mais e mais verdades, não, não mesmo! Quem julgar que estou aqui para desabafar meu inconformismo contra estes senhores está enganado. Estou certo de que todos estes reacionários, todos esses velhos destroços de um mundo que está desaparecendo terão o seu fim natural, cedo ou tarde. Não precisaremos apressar seu desaparecimento, pois eles acabarão por si mesmos. Não é tampouco essa gente que constitui o perigo mais iminente para a sociedade. Não, não são eles os mais perigosos destruidores das forças progressistas, nem são eles os mais perigosos inimigos da verdade e da liberdade!

GRITOS POR TODOS OS LADOS – Quem são? Quem são? Diga!

DR. STOCKMANN – Sim, podem ficar descansados, eu direi! Foi esta justamente a grande descoberta que fiz ontem (Alteando a voz) O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade, entre nós, é a enorme e silenciosa maioria dos meus concidadãos. Esta massa amorfa, é ela! Sim, agora já o sabem.

[Grande alvoroço. A maioria dos assistentes grita, sapateia, assobia. Ruído formidável na sala. Alguns mais velhos parecem aprovar com olhares divertidos (...)]

ASLAKSEN – O presidente exige que o orador retire as expressões impróprias e ditas impensadamente!

DR. STOCKMANN – De modo algum, Sr. Aslaksen. Não é a grande maioria da nossa população que me priva da liberdade e me impede de dizer a verdade?

HOVSTAD – A maioria sempre tem razão!

BILLING – A maioria sempre tem razão!

DR. STOCKMANN – Não! Maioria nunca tem razão! Esta é a maior mentira social que já se disse! Todo o cidadão livre deve protestar contra ela. Quem se constitui na maioria dos habitantes de um país? As pessoas inteligentes ou os imbecis? Estamos todos de acordo, penso eu, em afirmar que, em se considerando o globo terrestre como um todo, os imbecis formam uma maioria esmagadora. Este é um motivo suficiente para que os imbecis mandem nos demais. (Gritos, berros, protestos). Sim, vocês podem gritar mais alto do que eu, mas não podem me responder. A maioria tem o poder, infelizmente! Mas não tem razão! A razão está comigo e do lado de alguns indivíduos isolados. O direito está sempre com as minorias. (Tumulto total) (pp.118-120)

 

Bem, a sequência dos fatos enredará cada vez mais o médico.

Por exemplo, seu sogro comprará todas as ações do balneário por estarem em baixa, valendo muito pouco. Isso faz com que seja procurado pelo dono do jornal e por seu impressor que afirmam que a informação de que o balneário estava com a água poluída beneficiaria ao sogro e a ele, pois os dois teriam um lucro enorme a ser obtido pela venda das ações quando da finalização da reforma que traria água em condições ideais para o banho e para o consumo. Propõem que o médico faça uso do jornal para reafirmar seu posicionamento, mas que depois divida o lucro da venda das ações com eles. Incrédulo com o que ouve, Dr. Stockmann percebe que está só – ou quase só – depois de todos os acontecimentos.

 

A verdade como fato e/ou estratégia e a injustiça como consequência.

 

Apesar de estar ao lado de fatos que indicavam que o balneário era perigoso à saúde pública e agir de boa-fé, o Dr. Stockmann foi visto:

 

- por dois cidadãos da cidade (dono do jornal e dono da gráfica), como um excelente estrategista, que utilizou fatos reais para ganhar dinheiro com as ações da estação balneária, via seu sogro; e

- pela maioria da população como um inimigo que tentou tirar da cidade o seu ganha-pão.

 

Utilizando de maneira superficial parte da reflexão de Amartya Sen na sua obra A ideia de justiça, a leitura que o Dr. Stockmann fez da situação, quando descobriu que a água utilizada no balneário estava poluída, teria indicado a ele os caminhos possíveis que enfrentaria, dentre eles ficar sozinho e abandonado na empreitada que agora assumiria?

Confiou o doutor em suas percepções e impressões, antevendo possíveis injustiças que sofreria por parte da maioria das pessoas? E quando percebeu essa injustiça diante de seu posicionamento, isso serviu como um sinal que demandaria um exame crítico e cuidadoso da validade de sua ação e estratégias?

Sentiu-se culpado por ter seguido em frente e ter sido responsável pelas inverdades e discriminação lançadas sobre sua mulher e seus filhos, numa espécie de “efeito colateral” desse seu agir. Seguir em frente, mesmo por razões baseadas na ciência e no seu senso de justiça, fez com que sua ação tenha servido de estratégia política a um outro grupo? Ou a si próprio? O uso da razão e o “seguir em frente” fortaleceu cada vez mais seu posicionamento? A estratégia desmascarada pelo dono do jornal (e que ficaria oculta) seria verdade, e o povo jamais saberia o que de fato aconteceu?

Ibsen devia ter as respostas, mas as guardou, e deixou ao nosso arbítrio a conclusão.

Se imaginarmos que o Dr. Stockmann fosse levado a julgamento por crime contra o sistema econômico, fraude junto à Bolsa de Valores, com o argumento de que se locupletaria de forma ilícita com o dinheiro obtido com a venda das ações depois da reforma do balneário, seria de se supor que a verdade estaria encoberta pelo manto da mentira, da fraude, e que a ação judicial proposta para o condenar não tivesse êxito. Porém, no Direito, o uso da razão do juiz ao decidir – aplicação da lei ao caso concreto –, deve (ou deveria) separar o joio do trigo com base no processo, e então julgar (krisis, em latim) para atingir um ideal de justiça.

Ao analisarmos julgamentos famosos, polêmicos, no Brasil e no mundo, quantos deles são feitos a partir de fatos que se transmutam pela mídia e ganham pressão social pela silenciosa, enorme e imbecil maioria dos concidadãos, que seriam, segundo o Dr. Stockmann “O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade...”?

 

Seguir em frente: razão e boa-fé a serviço de nossos objetivos

 

O uso da razão, aliado à boa-fé, pode nos trazer exemplos variados de consequências imprevistas, ou previstas, mas de consequências incalculáveis. É o que em Direito se costuma nomear como Teoria da Imprevisão. Trago dois exemplos que sinalizam como posturas de um ou outro lado, como opressor e oprimido, forte e fraco, dentre outros nos levam a refletir como agimos.

Lembremos como referências, que

 

(i)           Oppenheimer, “... que liderou a equipe americana que desenvolveu a bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, citava comovido as palavras de Krishna no Gita (‘Eu me tornei a morte, o destruidor dos mundos’), ao assistir, em 16 de julho de 1945, à força assombrosa da primeira explosão nuclear causada pelo homem. (...) Oppenheimer, o ‘físico’, encontrou justificação, naquela época, em seu compromisso técnico de desenvolver uma bomba para o que era claramente o lado justo” (A ideia de justiça, p.245); ou

 

(ii)         o programa de desnazificação conduzido pelos aliados depois da Segunda Guerra Mundial para remover todos os vestígios de nazismo da sociedade alemã. “Frente a tal circunstância, os musicólogos sentiram-se impelidos a minimizar todos os avanços feitos graças ao regime nazista, ao mesmo tempo que esperavam assegurar a continuação dos empreendimentos musicológicos engendrados pelo apoio nazista” (A mais alemã das artes, p. 384)

 

Os dois casos nos ajudam a refletir.

No primeiro, o físico, imbuído de seu compromisso técnico com a ciência, aprofundou seus estudos e conhecimentos que redundaram na criação de uma bomba com poder de destruição impressionante; no segundo, parte dos músicos alemães, diante dos objetivos nazistas do Estado e para escapar da perseguição política e racial, “... poderiam encontrar na agenda cultural nazista aspectos de convergência com suas próprias crenças” (A mais alemã das artes, p. 47)

Neles a razão guiou a ação dessas pessoas.

Para o físico, a magnitude da destruição fruto do trabalho foi justificada posteriormente pelo justo motivo do lado da guerra: o dos aliados; já em relação aos músicos (e talvez também), a estratégia se aliou à razão pelo instinto de sobrevivência. A culpa lhes transpassou o corpo, mesmo que a razão os tenha feito refletir que o “seguir em frente” tenha sido fundamental.

O estranhamento que nos causa é que essas afirmações possas ser duvidosas, já que a ação verdadeira seria fruto daquilo que interiormente consideramos verdade. Afinal no agir/ser verdadeiro podemos incluir a luta pela sobrevivência mesmo com ações que aparentemente “fujam” do dever-ser.

De relance, ao fazermos uma anamnese, um olhar que nos remeta ao passado a partir do presente, analisando o uso de nossa razão e o nosso seguir em frente, o que encontraremos: Dr. Stockmann, o Prefeito, o físico ou os músicos? Quem nos julga além de nós mesmos?


Edições utilizadas: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. (Trad. Mauro W. Barbosa). São Paulo. Perspectiva. 2007; IBSEN, Henrik. Um inimigo do povo. (Trad. Pedro Mantiqueira). Porto Alegre. L&PM. 2001; PORTER, Pamela M. A mais alemã das artes. (Trad. Rainer Patriota). São Paulo, Perspectiva, 2015. SEN, Amartya. A ideia de justiça (Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes). São Paulo. Companhia das Letras, 2011. Crédito da imagem: <https://www.kobo.com/br/pt/ebook/um-inimigo-do-povo>. Acesso em: 28 mar. 2021.