Íon, de Eurípedes: autoctonia e poder político.
O poder de corruptos e corruptores: o Complexo de Apolo
Bernardina
Ferreira Furtado Abrão
Paulo de Tarso
Siqueira Abrão
1.
Introdução
“Se for lícito fazer uma
prece, que minha mãe seja de Atenas,
para que dela eu receba o
direito de falar livremente”.[1]
(Íon, dirigindo-se
a Xuto)
“Porque todo aquele que
se eleva será humilhado,
e quem se humilha será
elevado”. [2]
(Lc 14,11; Mt
13,12; Lc 18,14)
Este
artigo teve seu nascedouro quando fizemos as leituras das peças de teatro A gaivota, de Anton Tchekhov[3], refletindo sobre o
suicídio, o auto castigo da personagem Trepliov; O santo inquérito, de Dias Gomes[4], para discutirmos culpa e
boa-fé; e Um inimigo do povo, de
Ibsen[5], na qual tentávamos
verificar se uma verdade contrariada se transforma em mentira. A ideia original
era analisar os textos teatrais em interface com o Direito para depois
transformá-los em colunas para publicação nos sítios eletrônicos.
Já
nas primeiras reflexões a partir das peças de teatro acima citadas, Íon, de Eurípedes, nos estimulava a
escrever um artigo que pudesse abordar o coito forçado de Apolo em Creúsa. Ao
mesmo tempo o texto de Íon nos alertava
sobre a extrema dificuldade em levar adiante tal empreitada, já que as
descobertas a partir da leitura mostraram ser reais as teias indescritíveis e
indecifráveis pelas quais ou nas quais “teríamos de nos enredar”. Afinal,
buscar na personagem Íon, fruto nascido a partir do estupro de um deus, não era
tarefa fácil, principalmente porque não nos interessava o enquadramento penal
do ato – mesmo porque um deus terá, em sua origem, diferenças fundamentais em
relação ao agir dos seres humanos –, mas sim a interpretação da atitude de um
deus em relação a uma mulher que – “Às ocultas do pai [...] carregou o fardo de
seu ventre” [6]. – e como essa atitude se “reproduz” em parte de
agentes públicos em conluio com pessoas privadas, físicas ou jurídicas, como
motivação daqueles que se sentem deuses, numa metáfora do estupro em Íon, utilizando meios quase
inimagináveis para gerar seus frutos resultantes de um “estupro” na sociedade e
no Estado. Enfim, neste texto não é o “estupro” como tipo penal que nos
interessa, mas a motivação para a efetivação da conduta, por parte daqueles que
são portadores do que nomeamos Complexo
de Apolo.
A
busca do viés jurídico em relação à pesquisa do texto teatral levou a
investigação para o que Tzvetan Todorov chamava de o mistério das letras: “O ‘mistério das letras’ tem isto de
atraente: torna-se mais espesso à medida que se tenta dissipá-lo” [7].
Assim
é que as leituras começavam a se tornar um raciocínio único, num texto único, advindas
dos direcionamentos múltiplos, culminando na visão agora compartilhada. Essa
forma, cremos, nos serve para colocar em escritura o aparato intelectual que
começou a ter forma em leituras inter e transdisciplinares, num texto que parte
de muitas coisas para chegar a um objeto único.
Muitas
vezes, uma postura científica leva o pesquisador a um processo previamente
escolhido para chegar a uma ideia geral do que se quer estudar, mas também
vezes há que esse processo nos surpreende quando buscamos juntar os elementos
do que deve ser pesquisado. Por isso, a empreitada a que nos propusemos levou a
reflexão por processos de investigação que extravasaram aqueles que foram
pensados no início, já que o Teatro nos impulsionou ao Direito (ideia inicial),
que nos impulsionou à Filosofia – especialmente às reflexões das aulas de
Michel Foucault no Collège de France[8] –, e depois à Psicanálise e
à Semiótica, e de volta ao Direito.
Depois
das primeiras leituras e reflexões iniciais, a imagem da serpente (“Le Serpent”),
do poeta Paul Valéry começava a indicar como se daria o roteiro de trabalho
para se chegar ao objeto de estudo. A lembrança que Valéry deixara no exemplar
da edição Gallimard que oferecera a James Joyce foi motivação para buscar
vários elementos de trabalho, já que o poeta francês desenhou, “[...] em torno
do título impresso, uma serpente mordendo a própria cauda, com a divisa ‘Je mords ce que je puis’ (Eu mordo o que posso) ” [9] e [10].
Por
causa da “mordida” de Valéry, e por verificarmos a evolução das anotações para
escrever este artigo, emprestamos uma frase emblemática de seus Cadernos[11]
como postura intelectual: “O objeto principal de meu trabalho é a dificuldade;
na medida em que ela é minha própria dificuldade”[12].
Essa foi a razão pela qual resolvemos trazer o termo “Complexo” da Psicanálise,
usado na expressão que já nomeamos ao início, Complexo de Apolo. “Complexo” trazido aqui como foi
“[...]
utilizado essencialmente por Carl Gustav Jung, para designar fragmentos soltos
de personalidade ou grupos de conteúdo psíquico separados do consciente e que
têm um funcionamento autônomo no inconsciente, de onde podem exercer influência
sobre o consciente”.[13]
Já
em relação à Semiótica fazemos alusão – com o mesmo cuidado da utilização do
termo psicanalítico – a um entendimento que toma o texto
“[...]
como objeto de significação, [já que] a semiótica se preocupa em estudar os
mecanismos que o engendram, que o constituem como um todo significativo. Em
outras palavras: procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz
para dizer o que diz, examinando, em primeiro lugar, o seu plano de conteúdo,
concebido sob a forma de um percurso global que simula a “geração” do sentido.
Ao priorizar o estudo dos mecanismos intradiscursivos de constituição do
sentido, a semiótica não ignora que o texto é também um objeto histórico,
determinado na sua relação com o contexto (tomado em sentido amplo). Apenas
optou por olhar, de forma privilegiada, numa outra direção”.[14]
Esse
entendimento vindo da Semiótica ocorreu em razão de uma leitura do artigo de
Teresa Barbosa “Íon, de Eurípides, um
‘broto’ legal”,[15] publicado numa obra que analisa Íon sob o viés psicanalítico, e que
utilizamos para ajudar a identificar as “construções discursivas” – expressão utilizada pela autora – primeiro na
peça e depois como falsa justificativa pelos estupradores.
Quanto
à Filosofia, o pensar direcionado à proposição deste artigo veio das leituras
de algumas das aulas de Michel Foucault no Curso do Collège de France, em 1983.
Quanto
ao Direito, já que ao mesmo tempo que trabalhávamos com os materiais das
leituras cruzadas, buscávamos no viés jurídico de que maneira o Complexo de Apolo interfere em atitudes
ligadas à corrupção e nas ações ilegais que “estupram” o Estado e a sociedade,
ferindo não só os princípios constitucionais relativos à Administração Pública
como também previsões legais ligadas ao abuso de autoridade ou à malversação de
recursos públicos.
São
esses, portanto, os materiais básicos de estudo e de pesquisa com os quais trabalhamos.
2. A peça e o percurso da ideia geral
Trazemos
o “Argumento de Íon”, na tradução de Jaa Torrano[16]:
Apolo
seduziu e engravidou Creúsa, filha de Erecteu, em Atenas. Ela expôs o
recém-nascido sob a acrópole, tomando o mesmo lugar por testemunha da injustiça
e do parto. Hermes recolheu o bebê e transportou para Delfos e a profetisa o
encontrou e criou. Xuto desposou Creúsa, pois aliado aos atenienses recebeu de
presente as núpcias da mencionada antes. Não lhe nasceu outro filho, mas os
délfios fizeram guardião do tempo [sic][17] o criado pela profetisa.
Este, sem saber, servia ao pai[...].
As
personagens do drama: Hermes, Íon, coro de servidoras de Creúsa, Creúsa,
ancião, servidor de Creúsa, Pítia ou profetisa, Atena.
A
cena do drama se situa em Delfos. Drama representado cerca de 413 a.C.
Creúsa,
[18] filha de Erecteu, rei
de Atenas que já falecera, vai ao templo de Apolo com seu marido Xuto, em
Delfos, para consultá-lo. Ela está preocupada com a sucessão em Atenas, já que
não podia mais gerar filhos. Lá encontra Íon – que não sabe ser seu filho, pois
o abandonara à morte sob a acrópole no mesmo local onde sofrera o coito forçado
de Apolo –, que fora recolhido por Hermes a pedido do próprio pai, mas criado
por Pítia, a profetisa do templo. Na descrição do texto de Eurípedes, Íon[19]:
Passa
a infância a brincar em torno dos altares que o alimentavam, de modo que, ao
chegar à idade adulta, os Délfios fizeram dele guarda do ouro do deus e fiel
administrador de tudo; e no templo levou sempre até agora uma vida dedicada aos
deuses.
Nos
três episódios da peça, vários diálogos sugerem rumos que agravam e atenuam a
dor da mãe e do filho, já que ao tomarem conhecimento do vínculo de sangue, vão
retornar a Atenas com Xuto, que foi convencido pelo deus a assumir ser o
verdadeiro pai de Íon.
Numerosos
estudos já trataram da peça de Eurípedes com interessantes e importantes
abordagens literárias, filosóficas, psicanalíticas, jurídicas, falando da
relação dos deuses com os mortais, do abuso/estupro sofrido por Creúsa, da
injustiça, do abandono, maternidade e paternidade, compaixão, verdades,
falsidades, mentiras, enganos, segredos, partindo sempre da riqueza textual que
Íon oferece ao leitor. As
possibilidades de olhar o mundo e algumas de suas especificidades sob as falas
escritas por Eurípedes traçam situações que foram analisadas sob as mais
diversas óticas. Os segredos, omissões, falsidades, meias-verdades imporão um
manto de incertezas durante o transcorrer da peça, apesar do reencontro de mãe
e filho em Delfos, pois esse reencontro cria um problema em vez de uma solução
para a sucessão política, já que Atenas tinha uma legislação específica em
relação aos estrangeiros, pois eles não tinham os mesmos direitos dos nascidos
em Atenas. Tal previsão incluía os ascendentes, caso de Xuto, um não-ateniense
que assume a paternidade de Íon a mando do deus, ao sair do templo.
Michel
Foucault[20],
numa de suas aulas, também analisará essa situação quando afirma que Eurípedes
sugere na peça que o pertencimento à terra assegura ao cidadão ateniense o
exercício da parresía, o exercício do
poder de dizer a verdade para tentar fazer prevalecer seu pensamento na pólis.
A
paternidade e a maternidade como elementos fundamentais autóctones para se ter
direitos em Atenas nos leva a reforçar que o percurso da ideia deste texto
buscou instrumental analítico na Psicanálise, na Filosofia, e na Semiótica, a
partir das leituras do Teatro, buscando depois um viés jurídico. Importante
esclarecer que tais leituras são feitas para que se possa verificar se o que
pensamos a partir delas embasa o que propomos como análise neste artigo, que
são as posturas pessoais de agentes públicos e privados que mantêm relação
contratual ou pessoal com membros dos poderes do Estado numa relação análoga ao
estupro de Apolo em Creúsa. Todas essas intersecções, portanto, se aglutinam
para a análise de um comportamento específico de pessoas que trabalham na e
para a Administração Pública, e que acreditam ter algo em comum, em sua origem,
que os permita agir como deuses.
Desse
modo, o primeiro momento deste texto é construído a partir das leituras que
foram feitas também como opção acadêmica e pedagógica, para chegarmos a alguma
interpretação ligada às formas legítimas de se chegar à parresía, ao
“dizer-a-verdade”. Verdade ou falsidade, mentira ou segredo corresponderão a um
efeito da interpretação de nossas leituras de textos teóricos, dos diálogos na
peça, e também nos depoimentos que lemos e ouvimos nas mais diversas mídias de
parte dos envolvidos em esquemas fraudulentos de licitações, obras, e de caixa
dois para financiamento de campanhas a cargos eletivos.
Há
então um primeiro momento de construção textual no qual não são levadas em
consideração as condições sociais, antropológicas, econômicas, dentre outras
externas às ações sob investigação, às quais está submetido o portador do Complexo de Apolo. Antes, portanto, Íon servirá à abordagem conceitual de
poder, verdade, falsidade para, depois, jogá-la à luz dos princípios constitucionais.
A
última frase do coro na peça nos sugere um destino oracular (versos 1621-1622) (i) na tradução de Jaa Torrano: “Os honestos por fim obtêm dignas
sortes, e os maus, quais são, nunca estariam bem”; e (ii) na tradução de
Frederico Lourenço “[...] os bons encontrarão no fim as coisas de que são
dignos; os maus, visto que assim nasceram, nunca poderão ser bem-sucedidos”.
A
fala do coro serve como um dos pontos de análise deste texto, e vem do fato de
Íon, depois de descobrir que é filho de Creúsa, “conhecer e aceitar” sua origem
impura, já que sua mãe é ateniense e Xuto, seu verossímil, mas falso pai
designado por Apolo, é estrangeiro. Isso porque, como veremos, “nunca estar
bem” ou não “ser bem-sucedido” poderá estar ligado à origem, à ascendência de
Íon, à autoctonia. Para deixar um caráter duvidoso para o final, os episódios
da peça deixam as próprias personagens refletirem sem saber a verdade por
inteiro, ou sabendo meias-verdades. Senão, vejamos o que Eurípedes nos oferece
na leitura:
a)
O estupro sofrido por Creúsa é um segredo, e a criança fruto do coito forçado
foi abandonada à morte;
b)
Creúsa vai a Delfos com seu marido, Xuto, para consultar o oráculo, preocupada
com a sucessão em Atenas;
c)
Xuto sai do templo como pai daquele que primeiro encontrar. Apolo, que ordenara
a falsa paternidade, sabia que seria Íon;
d)
Íon aceita a situação, uma espécie de “arranjo”, mas ainda não sabe quem é sua
mãe, apenas desejando que ela seja ateniense;
e)
Creúsa, depois que Xuto assume a paternidade, e enquanto não sabe que é a
verdadeira mãe de Íon, teima em não o aceitá-lo como filho do marido, pois
naquele momento acredita que Íon é filho natural dele. Na peça ela se irrita
por entender que essa situação é uma ameaça ao seu poder e controle da família,
além de colocar em risco a sucessão em Atenas;
d)
Juntando esse jogo de “esconde-esconde” e de meias verdades, Creúsa acaba por
descobrir que Íon é fruto do estupro e revela a ele, que não acredita, que seu
verdadeiro pai é Apolo. Diante da dúvida de Íon e de seu desejo de entrar no
templo para confirmar a história surge Atena para corroborar o que lhe fora
narrado (verso 1560) devendo, porém, guardar essa informação como segredo.
O
segundo momento é o da abordagem de um tipo específico de poder político ou de
uso da política como um esquema inevitável de dominação perpetrado por agentes
públicos, eleitos ou escolhidos, desembocando nas suas posturas ilegais. Tais
posturas estão calcadas como se estivessem sob vestes de um deus – tanto no
momento da ilegalidade quanto na tentativa de perpetuação da falsidade-fraude
no tempo –, que acreditam ser. O Complexo
de Apolo é esse “sentimento inconsciente” – para usar o termo de Sigmund
Freud quando trata do Complexo de
castração[21]
–, de não se sentir ameaçado ao usar a falsidade para estuprar a sociedade e o
Estado.
Portanto,
reafirmamos as trilhas que este texto percorre:
a)
primeiro, das leituras cruzadas de Filosofia, Semiótica e Psicanálise em
relação a Íon numa abordagem
conceitual, sua interpretação e sua função no mundo do dever-ser; e
b)
segundo, a partir dessa abordagem, o suporte para analisar, no mundo real, o Complexo de Apolo, sentimento que
transformado em ação começa por ferir os princípios constitucionais da
Administração Pública.
3.
Autoctonia e o Complexo de Apolo: a sociedade e o Estado
estuprados
A
atualidade dos elementos propostos em Íon
em relação ao Complexo de Apolo vem
das leituras a partir das análises feitas por Michel Foucault em suas aulas dos
dias 5 de janeiro (primeira hora); 12 de janeiro (segunda hora) e 19 de janeiro
(primeira e segunda horas) de 1983, no Curso do Collège de France (1982-1983)[22], e das leituras de
Psicanálise e Semiótica já citadas, que podem nos esclarecer ou tornar a
reflexão mais espessa na tentativa de dissipar, como escreveu Todorov.
Retomando
a fala final do Coro ao término da peça, notamos que Íon precisa ser filho de
Atenas para poder ter os direitos de um cidadão ateniense, não podendo ter
mistura estrangeira na ascendência (lembremo-nos que Xuto é estrangeiro, mas
foi aceito pelo rei Erecteu, se casando com Creúsa por ter defendido Atenas em
combate); o risco de Íon é não ser nada: “[...] não serei chamado por nenhum
nome”, na tradução portuguesa e “[...] serei chamado nada, não sendo nada”, na
brasileira. O que fatalmente ocorrerá com ele é que não terá autoridade
política como cidadão, devendo, para ser ouvido, ter que alcançar o poder pela
força, de forma tirânica, ou o poder de um só, como quer Foucault.[23] Melhor seria ficar em
Delfos, servindo a um deus, do que estar em Atenas e não poder dizer, pois
mesmo que “[...] a lei faça dele um cidadão, sua língua continuará sendo
serva”. [24]
A
preocupação de Íon vem do fato de que Atenas possuía uma legislação própria que
[...]
não reconhecia o direito de cidadania aos filhos nascidos de um pai ateniense,
mas de mãe não ateniense. Em outras palavras, a dupla ascendência ateniense era
requerida desde meados do século V. Essa legislação extremamente severa, típica
mais uma vez de Atenas, tinha por objetivo evitar a inflação do número de
cidadãos.[25]
Michel
Foucault expõe na aula do dia 19, na segunda hora:
Em
torno de Íon, do nascimento de Íon, tivemos Creusa, que efetuou um ligeiro
deslocamento de verdade, ao pretender que sua irmã é que foi seduzida por
Apolo; o deus, que por vergonha não quis dar a resposta verdadeira e indicou a
Xuto um filho que na realidade não é o dele; e Xuto, que de certo modo por
negligência, se contenta com verdades que são, a bem dizer, verossímeis mas que
não são realmente estabelecidas. E então é esse jogo de meias mentiras, meias
verdades, aproximações, é esse jogo que Íon recusa. [...] ele quer fundar seu
direito, fundar seu direito político em Atenas.[26]
Portanto,
a origem ligada à terra é fator fundamental para que Íon tenha autoridade e não
seja o nada, como ele mesmo diz. Ele
quer “[...] fazer parte daqueles que ocupam uma posição principal na cidade”.[27]
Se
para Íon o poder político só poderia ser alcançado como ateniense puro, legitimado
para o exercício do poder, a ideia de alcançar esse poder via tirania ou
monarquia, não lhe interessava. Interessa a ele “ocupar a primeira fileira”. A
primeira fileira pertence às pessoas importantes, àqueles que ocupam uma
posição principal na cidade.
Reforçamos
a opção pela tradução brasileira da edição do livro de Michel Foucault em
relação a algumas frases de Íon, por
acreditarmos serem mais próximas em relação às argumentações deste texto.
Na
peça, Xuto se dirige a Íon quando sai do templo, depois de consultar Apolo; é
nesse momento que ele diz a Íon que é seu pai; Íon ainda não sabe que Creúsa é
sua mãe. Ou seja, a reflexão e o desenvolvimento do episódio, nessa parte, é
fruto do desconhecimento de Íon que sua mãe é ateniense. Por isso fala (e essa
fala está na primeira epígrafe, verso 670) que tem o desejo de ter uma mãe
ateniense, porque quer ter seu “direito” de falar em Atenas e alcançar o poder
de forma natural. Por isso a frase no livro da edição brasileira de Foucault
nos serve melhor.
As
traduções brasileira e portuguesa não sustentam nosso argumento nessa parte.
Pois a brasileira traz assim os versos (595 a 597): “Se impelido a primeiro
posto na urbe, tento ser alguém, pelos incapazes sim serei odiado, pois o poder
aflige” e na portuguesa: “serei detestado por todos aqueles que nunca poderão
chegar ao poder. Pois a superioridade é sempre melindrosa”.
Pela
leitura das duas traduções – as duas diretamente do grego, utilizando o texto
estabelecido por J. Diggle [28] – percebem-se diferenças
que, cremos, relacionam-se às opções dos tradutores e às diferenças de fala e
escrita da língua portuguesa em Portugal e no Brasil. Não é a missão deste
texto comparar traduções e/ou analisar as opções em função das diferenças
semânticas, linguísticas ou de qualquer outra ordem. Porém, e excepcionalmente,
em relação ao verso 595, usamos a tradução sugerida pelo tradutor brasileiro na
obra O governo de si e dos outros, de
Michel Foucault, da palavra rang, em
francês, e traduzida por fileira.
Esse é o trecho na edição francesa de Le
gouvernement de soi e de autres: “Il dit: Si je veux atendre le premier rang (eis
tò prôton zugon: pour le premier rang).[29]
Cremos
que a atitude de Apolo ao forçar a relação sexual com Creúsa dá à peça e a nós,
leitores, a possibilidade do que se poderia pensar a respeito do papel a ser
assumido por Íon. Ele, em verdade, quer a cidadania, mas não só ela. Quer o
poder do dizer verdadeiro, do dizer-a-verdade, da parresía.
Dado que a lei é igual
para todos (princípio da isonomia), dado que cada um tem o direito de voto e de
externar sua opinião (isegoria), quem vai ter a possibilidade e o direito da parresía, isto é, de se levantar, de
tomar a palavra, de tentar persuadir o povo, de tentar prevalecer sobre os
rivais – com risco, quanto ao mais, de perder com isso o direito de viver em
Atenas, como ocorre quando há o exílio, o ostracismo de um líder político –, ou
eventualmente arriscar sua própria vida? [...] Eurípedes não quer de forma
alguma propor em Íon uma solução
constitucional para dizer quem deve exercer a parresía, mas vê-se muito bem em que contexto ele formula essa
questão da parresía: quando, como o
texto mostra muito bem, a parresía
não pode ser herdada como um poder violento e tirânico, [...]. O que Eurípedes
sugere é que o pertencimento à terra, a autoctonia, esse arraigamento histórico
num território vai assegurar ao indivíduo o exercício dessa parresía. [...] Com efeito, creio que essa peça
respondia imediatamente a um problema político preciso [e] que ela é ao mesmo
tempo o drama grego sobre a história política do dizer-a-verdade, sobre a
fundação, lendária e verdadeira ao mesmo tempo, do dizer-a-verdade na ordem da política.[30]
Parece
óbvio que Íon se encontra nessa estranha situação – e Eurípedes nos “joga” qual
seria a melhor escolha: tentar alcançar o poder com legitimação, já que é filho
de uma ateniense apesar de pai não ateniense, mas continuar “servo da língua”,
ou permanecer em Delfos, o que, ao que parece, não ocorrerá.
Toda
a complexidade da situação em relação a Íon vem do estupro e da falsidade e do
segredo em relação à sua paternidade.
Devemos
lembrar sempre que Xuto, ao sair do templo de Apolo sai com a falsidade de
assumir a paternidade do filho que não é seu. Desse modo, o deus mentiu para
conformar e contornar uma situação que ele mesmo criara. Ao não deixar Íon
morrer na gruta pelas mãos de Hermes, que foi buscá-lo, talvez não tenha se
dado conta do que poderia acontecer. A ida de Creúsa e Xuto ao oráculo, por não
poderem gerar novos filhos, se dera em função da transmissão do poder em
Atenas, e esse é, digamos, o acontecimento inicial da peça, que faz com que a
história se desenrole com a falsidade verossímil da paternidade de Íon.
Apolo,
por ser um deus, subjugara Creúsa. Assim “[...] à força, Febo atrelou Creúsa,
filha de Erecteu, ao jugo conjugal, [...]” [31] conta Hermes, irmão de
Apolo, no início de Íon.
Algumas
dessas atitudes mostram como o destino de Íon pode ser mais complicado do que
se imagina, já que sua mãe se silencia – só revela seu segredo quase no final
da peça – sobre o estupro de que é vítima e a consequente ausência de Apolo
como pai. Tal ausência, cremos, faz com que Eurípedes não coloque falas na
personagem, mas não o impossibilita de ser um “provedor” oculto de Íon.
Dentre
as muitas reflexões a partir da leitura e análise de Íon, citaremos uma de viés psicanalítico, a partir do silêncio de Creúsa
sobre o filho, uma “fantasia ideológica”, para utilizar o termo empregado por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, em seu texto “Íon, de
Eurípides, um ‘broto’ legal”:
A
expressão “fantasia ideológica”, aqui empregada da forma como o faço, ao que me
consta, e segundo Richard Rader, foi cunhada pelo filósofo Slavoj Žižek; [...]
Antecipo,
entretanto, que não pretendo discutir o pensamento do filósofo, mas tão somente
observar no nosso dia a dia como vivemos a realidade proposta na tragédia
“Íon”, isto é, como lidamos com a violência que gera frutos que ignoramos, abandonamos
e escondemos numa gruta escura; e como, com esse modo de ser, geramos
em nós o desconforto de uma perda mal resolvida, preenchida pela assunção de um
discurso coletivo, conceitual e igual para todos, um discurso que tomamos por verdade
e que dirige nossos desejos. Objetivamente, refiro-me ao coito indesejado de
Creúsa com Apolo; à fecundação inconveniente, ao nascimento seguido de ékthesis, isto é, da exposição do menino
que vem das Penhas Altas; e, finalmente, ao mito do homem nascido da terra,
solução ideológica denominada autoctonia, que incide sobre Creúsa e,
consequentemente, sobre Íon, e que colide com a bastardia real do rapaz: para
todos, ele é nascido de um pai desconhecido.
Nesse
sentido, pela autoctonia, Íon é um “broto legal”, uma semente que brotou da
terra (corpo feminino de Creúsa) ateniense, isto é, um fruto legítimo filho de
uma cidadã da cidade de Atenas; contudo, no sentido físico e carnal, como filho
de Creúsa e Apolo, um pai ausente, Íon é ilegítimo, um broto ilegal que merece,
segundo a lógica aplicada na pólis
antiga, ser podado; pelo menos é o que afirmam os fragmentos das inscrições de
Cós n. 367 e 368 catalogados por William Paton e Edward Hicks. Neles, pode-se
ler um decreto que ordenava aos cidadãos do lugar informar, por escrito, aos
guardiões do templo, os nomes das crianças, o nome próprio do pai, da família
de origem e da mãe, devendo-se registrar, ainda, de quem esta era filha (Paton
& Hicks, 1891; Rose, 1926, pp. 213-244). O decreto reforça a importância do
nascimento legítimo, para cuja confirmação era necessário identificar o pai e
dar à mãe um atestado de existência, a saber, de legitimidade, por meio da
cidadania dela por parte de pai (Rose, 1926, p. 216). Desse modo, parece razoável
afirmar que “os filhos nascidos de casamentos mistos não teriam acesso aos
direitos cívicos, ao menos na sua totalidade...” Mas não há — desde a
antiguidade — quem não se arranje com as construções discursivas e virtuais;
assim como se podem adequar as coisas e tomar o café da manhã descafeinado ou a
cervejinha da tarde sem álcool... [32]
A
atualidade indicada por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, ao analisar o texto
sob o viés da maternidade e da ausência do pai nos dá, juntamente com a leitura
de Michel Foucault, a possibilidade de uma reflexão que traz, no nosso
entendimento e a partir do estupro de Apolo, uma das trilhas para o que
pensamos neste artigo. Afinal, o estupro seguido do nascimento e sobrevivência
da criança coloca Apolo como aquele que age errado e que para “consertar” seu
ato se utiliza de possibilidades que são verossímeis, mas falsas (é verossímil
que Xuto seja o pai de Íon, mas é totalmente falso).
Desse modo, e trazendo analogamente
a postura endeusada para a atualidade de nosso cotidiano, o Complexo de Apolo surge na motivação que
tenta perpetuar as ações ilegais quando os agentes dessa mesma ação – num jogo
de arranjos discursivos e virtuais – tentam mostrar que a falsidade, quando
descoberta e vinda a público, se reveste de uma verossimilhança que ajude a
convencer a sociedade de sua legitimidade; o caminho que deságua na tentativa
de perpetuação da falsidade vem do estupro de Apolo, da falsidade da
paternidade de Íon e do seu desejo de ter o direito político de
dizer-a-verdade.
Assim
como no desejo de Íon de buscar a primeira fileira para ocupar uma posição
principal, muitos agentes públicos, empresários, executivos – ou em verdade
qualquer outra pessoa –, ao quererem ter esse mesmo sonho da “primeira
fileira”, o fazem a partir de ações tirânicas – o poder de um só –, ocupando o
lugar sem ter conquistado o direito de ocupá-lo dizendo-a-verdade, sem a parresía.
Atualmente,
o estuprador do Estado tem um
pretenso poder de um deus, porque conhece bem os meandros não da atividade de
onde surgirá a ilegalidade, mas de como criar discursos verossímeis, porém
falsos, como o da paternidade e dos arranjos de Apolo, Íon, Creúsa e Xuto.
Não
cremos ser necessário trazer exemplos, mas é possível verificar, porque
amplamente divulgadas nos meios de comunicação e confirmadas por muitos de seus
partícipes e pelos resultados obtidos, muitas histórias ligadas a fraudes em
licitações, superfaturamento de obras, caixa dois, estranhas decisões
judiciais, criação de leis casuísticas para resolver determinadas situações,
omissão de órgãos e entidades responsáveis por fiscalização, em preocupantes
representações (in)conscientes do Complexo
de Apolo.
Aqueles
que se utilizam do público como se privado fosse manipulam dados e oferecem
soluções plausíveis para o que forjaram como verdadeiro, num esquema de
corrupção de uso particular dos recursos públicos, sendo que no mais das vezes
se sentem longe das teias da justiça. Os deuses terrenos, pequenos Apolos, agem
como se a “estrutura-oráculo” da Administração Pública fosse o templo onde
selassem o destino dos humanos, servindo ainda de extensão de suas
contas-correntes e fazendo a sociedade refém de seu próprio destino.
A
procedência daqueles que estupram a sociedade é a mesma da sociedade estuprada.
Não é difícil verificar que tanto os membros dos Poderes Executivo (incluídas
as Administrações Públicas direta e indireta), Legislativo e Judiciário quanto
aqueles da iniciativa privada, bem como os administrados possuem origem
idêntica. Assim, a autoctonia – utilizada aqui tão-somente para designar a
sociedade que se tem como origem – será o fator preponderante para a ação dos
portadores do Complexo de Apolo.
Esclarece-se
que este pequeno estudo não identifica as condições sociais como determinantes
para aqueles que agem como “estupradores”, mas, de alguma forma, existem
situações que os predispõe a uma espécie de um falso senso comum. Frases como
“se não oferecer uma quantia por fora não sai negócio” ou “é comum o caixa
dois” ou ainda “é prática usual para o empresário oferecer dinheiro por fora
para conseguir o contrato”, incluídas as fraudes constantes em processos de
licitação, acabam por virar prática e aceitas pelo grupo espúrio que detém
poder na Administração bem como do particular que mantém com ela negócios contratuais
ou que precisam de um serviço público.
4. O Complexo de Apolo e o
desrespeito aos princípios constitucionais da Administração Pública
As
ações implementadas pelos portadores do Complexo
de Apolo desrespeitam os princípios constitucionais que norteiam o
exercício do poder.
A
motivação dos atos dos agentes públicos para a efetivação do estupro – em
coautoria com pessoas físicas e/ou jurídicas da iniciativa privada – torna
vítima a sociedade à qual eles próprios pertencem e desrespeita o regime
jurídico ao qual estão submetidos. Desse modo, efetivado o ato criminoso, não
só conseguem inviabilizar as metas de implementação de políticas públicas como
transformam tais políticas em “políticas governamentais casuísticas”; além
disso, fazem sangrar o Estado desviando recursos financeiros, simplificam os
processos de licitação e diminuem as exigências constitucionais e legais do
licenciamento ambiental para obras de programas governamentais que exijam
grandes intervenções antrópicas. Podemos identificar que a motivação desses
atos terá origem – além da tendência pessoal ao estupro – na politização das
políticas públicas.
Devemos
ainda lembrar que o financiamento por parte de bancos públicos, para incremento
e desenvolvimento de empresas nacionais, envolve operações financeiras que
deveriam contribuir para o desenvolvimento do país; porém esbarram na motivação
política direcionando valores vultosos a pessoas específicas, desobedecendo o
papel social do banco, em troca do retorno financeiro para os agentes ou para
financiamento de campanhas políticas.
O
caráter político dos atos de decisão tanto da Administração Pública quanto dos
bancos públicos afasta a ação do agente da finalidade pública. Hely Lopes
Meirelles mostra bem a diferença de um ato que busque a finalidade pública
daquele em que seja lícito que a pretensão particular possa gerar negócio com a
Administração, sempre em nome do interesse público. Desse modo, coloca, ipsis litteris:
Desde
que o princípio da finalidade exige
que o ato seja praticado sempre com finalidade pública, o administrador fica
impedido de buscar outro objetivo ou de praticá-lo no interesse próprio ou de
terceiros. Pode, entretanto, o interesse público coincidir com o de
particulares, como ocorre normalmente nos atos administrativos negociais e nos
contratos públicos, casos em que é lícito conjugar a pretensão do particular
com o interesse coletivo.
O
que o princípio da finalidade veda é
a prática de ato administrativo sem interesse público ou conveniência para a
Administração, visando unicamente a satisfazer interesses privados, por
favoritismo ou perseguição dos agentes governamentais, sob a forma de desvio de finalidade. Esse desvio de
conduta dos agentes públicos constitui uma das mais insidiosas modalidades de abuso de poder.[33]
Os
atos praticados que se afastam da finalidade pública, como vimos acima, têm
origem numa normatização que facilita o abuso. Tais normas, ao nosso
entendimento, mudam o eixo ligado à finalidade pública para outro, de
“políticas governamentais casuísticas”. Assim, a politização da ação
administrativa que se constitui na “ insidiosa modalidade de abuso de poder”,
como afirma Meirelles, será um dentre outros fatos geradores que desaguarão no Complexo de Apolo.
Por
outro lado, e como efeito das mudanças de caráter político da Administração
Pública, muitos dos projetos de lei se originam dessas decisões políticas, e a
lei a ser votada e promulgada terá em seu texto uma decisão governamental que obedecerá
a critérios estranhos à finalidade pública. Afinal, será nos órgãos
administrativos da burocracia estatal que serão feitos os estudos técnicos e
financeiros demonstrando a eficácia do projeto de lei a ser enviado ao Poder
Legislativo. E será também nesses mesmos órgãos administrativos, que elaboraram
os estudos, que a prática advinda da lei pode ser transformada em atos e
contratos verossímeis, mas falsos em sua execução mesmo porque
Na
era contemporânea, aumentou a importância da atividade administrativa na
dinâmica do Estado, e uma das consequências disso é a participação de
servidores (isto é, na chamada burocracia) em atividades que seriam típicas de
governo, tais como a fixação do teor de regulamentos e decretos, apresentação
de propostas que se transformam em realização concreta ou ato normativo.[34]
O comentário de Odete Medauar – imaginado por hipótese num ambiente de desvio de finalidade – nos alerta e ao mesmo tempo nos dá a dimensão de como leis casuísticas geram regulamentos e decretos casuísticos. Aí está mais uma motivação do Complexo de Apolo: “preparar o terreno” com a verossímil, mas falsa finalidade coletiva, para a capitulação da sociedade e do Estado em benefício de poucos. Falsear, sob o manto do interesse coletivo, a supremacia ou preponderância[35] do interesse público sobre o privado sem obediência aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade.
Celso
Antonio Bandeira de Mello[36] define o interesse público
como
o
interesse do todo, do conjunto social, [...] a dimensão pública dos interesses
individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da
Sociedade (entificada juridicamente no Estado).
Ainda segundo seu entendimento, o interesse público “só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro”[37]. E as prerrogativas inerentes à preponderância do interesse público sobre o privado só adquirem legitimidade na medida em que visam alcançá-lo, “não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais”[38].
A
leitura do Título II da Constituição Federal “Dos direitos e garantias
fundamentais”, com o Capítulo I “Dos direitos e deveres individuais e
coletivos”, que antecede o art. 5º nos adverte que a diretriz constitucional adotada
deve proteger os direitos individuais a partir da predominância dos direitos
coletivos advindos da finalidade pública. Assim, o direito à saúde ou ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado direcionam o que, coletivamente, deve ser
garantido à sociedade para que o exercício do direito individual tenha
efetividade e seja democraticamente generalizado. Porém, como a Administração
Pública detém e distribui poderes que serão exercidos por seus agentes, os que
forem portadores do Complexo de Apolo,
por razões de origem, autoctonia, irão individualizar interesses e conveniências.
Nesse caso, as restrições relativas à ação desses agentes – e que não são
obedecidas –, como a observância da finalidade pública e os princípios da
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência serão meros
disfarces aparentemente verdadeiros para os estupros cometidos contra a sociedade
e o Estado.
Reafirmamos
que tais estupros vêm dos abuso e desvio de poder e da finalidade pública, e
afastam o Estado das políticas públicas garantidoras do bem comum. A
prevalência dos direitos coletivos se transformam em prevalência dos direitos
individuais e familiares dos complexados.
Se verificarmos que a subordinação da atividade administrativa é adstrita às
diretrizes da Constituição Federal e à legislação específica temos duas
circunstâncias que ajudariam a evitar os estupros: (i) controlar o casuísmo nefasto de alguns processos legislativos e
sua respectiva regulamentação sempre oriunda dos órgãos burocráticos da
Administração Pública; e (ii)
controle externo eficaz, tanto administrativo quanto jurisdicional, das
atividades, atos e contratos da Administração. Sem isso não há estrutura de
governo que combata e elimine a motivação dos estupros.
Celso Antônio Bandeira de Mello
afirma que o interesse público, fixado na lei, não está à disposição da vontade
do administrador, pelo contrário, apresenta-se para ele sob a forma de um
comando[39]. O doutrinador afirma,
ainda, ao tratar sobre o princípio do
controle jurisdicional dos atos administrativos, que de nada adiantaria o
assujeitamento da Administração Pública à Constituição e às leis, o que é da essência
do Estado de Direito,
“se
não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contrastar seus
atos com as exigências dela decorrentes, obter-lhes a fulminação quando
inválidos e as reparações patrimoniais cabíveis”[40].
No
Brasil, em que se adotou o sistema anglo-americano, com unidade de jurisdição,
cabe exclusivamente ao Poder Judiciário o exercício pleno da atividade
jurisdicional. Daí se infere que:
Ato
algum escapa ao controle do Judiciário, pois nenhuma ameaça ou lesão de direito
pode ser subtraída à sua apreciação (art. 5º, XXXV, da CF/88). Assim, todo e
qualquer comportamento da Administração Pública que se faça gravoso a direito
pode ser fulminado pelo Poder Judiciário, sem prejuízo das reparações
patrimoniais cabíveis.[41]
A
retomada da finalidade pública e do interesse coletivo como diretrizes de
Estado a serem seguidas – tendo como limites os princípios do art. 37 da
Constituição Federal e das garantias e direitos individuais –, levam
efetividade à normatização criada a partir de estudos vinculados aos reais
interesses da sociedade. Três pontos, em princípio, devem nortear a retomada; (i) projetos de lei oriundos de
percepções sociais reais e de interesses estratégicos do Estado para
fortalecimento dos direitos individuais e coletivos (ii) controles interno e externo eficazes dos atos da Administração;
e (iii) afastamento, de seus cargos e
funções pelas vias republicanas, dos portadores do Complexo de Apolo, que
causam danos às políticas econômicas, ambientais e sociais.
Tais
pontos darão início, cremos, a um processo que diminuirá as inserções
criminosas aqui descritas. A sociedade, via exercício da cidadania, conhecendo
seus direitos e agindo na direção da melhoria coletiva pode diminuir o
aparecimento dos deuses humanos, esses Apolos oriundos da prática do levar
vantagens individuais em detrimento de muitos.
5. Conclusão
Íon,
quem sabe, não volte para Atenas, pois quer o poder de dizer-a-verdade, a parresía, o direito que só pode
conquistar sendo ateniense puro. Mas a dúvida em relação à ação para conquistar
esse direito, que teria de ser pela força, talvez o faça desistir. No texto da
peça o destino parece feliz, afinal Atena acompanhará mãe e filho a seu
destino. “Vamos para casa”, diz Creúsa (verso 1617), mas a última fala é do
coro: “os maus, vistos que assim nasceram, nunca poderão ser bem sucedidos”
(versos 1622-1623),[42] a quem se referiam?
Ao
observarmos a atuação dos portadores do Complexo
de Apolo verificamos que eles exercem o poder político com extrema desenvoltura
e certos de que não serão percebidos. O fato de sua prática política não
prescindir desse jogo de meias verdades e meias mentiras geram o estupro
planejado e perpetrado na sociedade e na Administração sem que haja percepção
do ato ou com percepção tardia.
O
estupro análogo ao de Apolo deixa de ser crime na medida em que a frase
“governar é assim” se torne verdadeira; ela ajusta o liame entre o público e o
privado por meio de novos e falsos instrumentos legais e contratuais que dão
caráter verossímil à fala e ação dos pequenos deuses.
Eurípedes,
no Íon nos deixa o inconcluso, ou
talvez uma conclusão que venha da reflexão que tantos já fizeram em seu texto.
O deus “vai continuar mudo, o deus vai continuar ambíguo, o deus vai continuar
envergonhado. Os homens é que vão fazer o trajeto rumo ao dizer-a-verdade [...]”[43].
A
autoctonia referente ao lugar e à sociedade dos que têm o Complexo de Apolo os faz dizer-a-verdade – estando na primeira fila
–, depois de utilizar meios deslegitimados e ilegais – mas muitas vezes legalizados
– para alcançar o poder, sob o código moral de que não há outra maneira de
governar.
O
Complexo de Apolo se dá em qualquer
situação quando a luta por essa primeira fila ocorre nos mais variados setores,
inclusive naqueles de onde partem críticas às posturas dos estupradores.
Em
quem acreditar?
Usando
as palavras de Michel Foucault na sua aula, são os homens, mais uma vez, que
vão fazer o trajeto rumo ao dizer-a-verdade.
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