31/01/2021

Íon, de Eurípedes: autoctonia e poder político. O poder de corruptos e corruptores: o Complexo de Apolo.


Íon, de Eurípedes: autoctonia e poder político.

O poder de corruptos e corruptores: o Complexo de Apolo

 


Bernardina Ferreira Furtado Abrão

Paulo de Tarso Siqueira Abrão



1. Introdução

 

“Se for lícito fazer uma prece, que minha mãe seja de Atenas,
para que dela eu receba o direito de falar livremente”.[1]
(Íon, dirigindo-se a Xuto)

“Porque todo aquele que se eleva será humilhado,
e quem se humilha será elevado”. [2]
(Lc 14,11; Mt 13,12; Lc 18,14) 

Este artigo teve seu nascedouro quando fizemos as leituras das peças de teatro A gaivota, de Anton Tchekhov[3], refletindo sobre o suicídio, o auto castigo da personagem Trepliov; O santo inquérito, de Dias Gomes[4], para discutirmos culpa e boa-fé; e Um inimigo do povo, de Ibsen[5], na qual tentávamos verificar se uma verdade contrariada se transforma em mentira. A ideia original era analisar os textos teatrais em interface com o Direito para depois transformá-los em colunas para publicação nos sítios eletrônicos.

Já nas primeiras reflexões a partir das peças de teatro acima citadas,
Íon, de Eurípedes, nos estimulava a escrever um artigo que pudesse abordar o coito forçado de Apolo em Creúsa. Ao mesmo tempo o texto de Íon nos alertava sobre a extrema dificuldade em levar adiante tal empreitada, já que as descobertas a partir da leitura mostraram ser reais as teias indescritíveis e indecifráveis pelas quais ou nas quais “teríamos de nos enredar”. Afinal, buscar na personagem Íon, fruto nascido a partir do estupro de um deus, não era tarefa fácil, principalmente porque não nos interessava o enquadramento penal do ato – mesmo porque um deus terá, em sua origem, diferenças fundamentais em relação ao agir dos seres humanos –, mas sim a interpretação da atitude de um deus em relação a uma mulher que – “Às ocultas do pai [...] carregou o fardo de seu ventre” [6]. –  e como essa atitude se “reproduz” em parte de agentes públicos em conluio com pessoas privadas, físicas ou jurídicas, como motivação daqueles que se sentem deuses, numa metáfora do estupro em Íon, utilizando meios quase inimagináveis para gerar seus frutos resultantes de um “estupro” na sociedade e no Estado. Enfim, neste texto não é o “estupro” como tipo penal que nos interessa, mas a motivação para a efetivação da conduta, por parte daqueles que são portadores do que nomeamos Complexo de Apolo.


         A busca do viés jurídico em relação à pesquisa do texto teatral levou a investigação para o que Tzvetan Todorov chamava de o mistério das letras:
O ‘mistério das letras’ tem isto de atraente: torna-se mais espesso à medida que se tenta dissipá-lo [7].

Assim é que as leituras começavam a se tornar um raciocínio único, num texto único, advindas dos direcionamentos múltiplos, culminando na visão agora compartilhada. Essa forma, cremos, nos serve para colocar em escritura o aparato intelectual que começou a ter forma em leituras inter e transdisciplinares, num texto que parte de muitas coisas para chegar a um objeto único.

Muitas vezes, uma postura científica leva o pesquisador a um processo previamente escolhido para chegar a uma ideia geral do que se quer estudar, mas também vezes há que esse processo nos surpreende quando buscamos juntar os elementos do que deve ser pesquisado. Por isso, a empreitada a que nos propusemos levou a reflexão por processos de investigação que extravasaram aqueles que foram pensados no início, já que o Teatro nos impulsionou ao Direito (ideia inicial), que nos impulsionou à Filosofia – especialmente às reflexões das aulas de Michel Foucault no Collège de France[8] –, e depois à Psicanálise e à Semiótica, e de volta ao Direito.

Depois das primeiras leituras e reflexões iniciais, a imagem da serpente (“Le Serpent”), do poeta Paul Valéry começava a indicar como se daria o roteiro de trabalho para se chegar ao objeto de estudo. A lembrança que Valéry deixara no exemplar da edição Gallimard que oferecera a James Joyce foi motivação para buscar vários elementos de trabalho, já que o poeta francês desenhou, “[...] em torno do título impresso, uma serpente mordendo a própria cauda, com a divisa ‘Je mords ce que je puis’ (Eu mordo o que posso) ” [9] e [10].

Por causa da “mordida” de Valéry, e por verificarmos a evolução das anotações para escrever este artigo, emprestamos uma frase emblemática de seus Cadernos[11] como postura intelectual: “O objeto principal de meu trabalho é a dificuldade; na medida em que ela é minha própria dificuldade[12]. Essa foi a razão pela qual resolvemos trazer o termo “Complexo” da Psicanálise, usado na expressão que já nomeamos ao início, Complexo de Apolo. “Complexo” trazido aqui como foi

“[...] utilizado essencialmente por Carl Gustav Jung, para designar fragmentos soltos de personalidade ou grupos de conteúdo psíquico separados do consciente e que têm um funcionamento autônomo no inconsciente, de onde podem exercer influência sobre o consciente”.[13]

Já em relação à Semiótica fazemos alusão – com o mesmo cuidado da utilização do termo psicanalítico – a um entendimento que toma o texto

“[...] como objeto de significação, [já que] a semiótica se preocupa em estudar os mecanismos que o engendram, que o constituem como um todo significativo. Em outras palavras: procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz, examinando, em primeiro lugar, o seu plano de conteúdo, concebido sob a forma de um percurso global que simula a “geração” do sentido. Ao priorizar o estudo dos mecanismos intradiscursivos de constituição do sentido, a semiótica não ignora que o texto é também um objeto histórico, determinado na sua relação com o contexto (tomado em sentido amplo). Apenas optou por olhar, de forma privilegiada, numa outra direção”.[14]

 

Esse entendimento vindo da Semiótica ocorreu em razão de uma leitura do artigo de Teresa Barbosa “Íon, de Eurípides, um ‘broto’ legal”,[15]  publicado numa obra que analisa Íon sob o viés psicanalítico, e que utilizamos para ajudar a identificar as “construções discursivas” –  expressão utilizada pela autora – primeiro na peça e depois como falsa justificativa pelos estupradores.

Quanto à Filosofia, o pensar direcionado à proposição deste artigo veio das leituras de algumas das aulas de Michel Foucault no Curso do Collège de France, em 1983.

Quanto ao Direito, já que ao mesmo tempo que trabalhávamos com os materiais das leituras cruzadas, buscávamos no viés jurídico de que maneira o Complexo de Apolo interfere em atitudes ligadas à corrupção e nas ações ilegais que “estupram” o Estado e a sociedade, ferindo não só os princípios constitucionais relativos à Administração Pública como também previsões legais ligadas ao abuso de autoridade ou à malversação de recursos públicos.

São esses, portanto, os materiais básicos de estudo e de pesquisa com os quais trabalhamos.

 

2. A peça e o percurso da ideia geral

 

Trazemos o “Argumento de Íon”, na tradução de Jaa Torrano[16]:

Apolo seduziu e engravidou Creúsa, filha de Erecteu, em Atenas. Ela expôs o recém-nascido sob a acrópole, tomando o mesmo lugar por testemunha da injustiça e do parto. Hermes recolheu o bebê e transportou para Delfos e a profetisa o encontrou e criou. Xuto desposou Creúsa, pois aliado aos atenienses recebeu de presente as núpcias da mencionada antes. Não lhe nasceu outro filho, mas os délfios fizeram guardião do tempo [sic][17] o criado pela profetisa. Este, sem saber, servia ao pai[...].

As personagens do drama: Hermes, Íon, coro de servidoras de Creúsa, Creúsa, ancião, servidor de Creúsa, Pítia ou profetisa, Atena.

A cena do drama se situa em Delfos. Drama representado cerca de 413 a.C.

Creúsa, [18] filha de Erecteu, rei de Atenas que já falecera, vai ao templo de Apolo com seu marido Xuto, em Delfos, para consultá-lo. Ela está preocupada com a sucessão em Atenas, já que não podia mais gerar filhos. Lá encontra Íon – que não sabe ser seu filho, pois o abandonara à morte sob a acrópole no mesmo local onde sofrera o coito forçado de Apolo –, que fora recolhido por Hermes a pedido do próprio pai, mas criado por Pítia, a profetisa do templo. Na descrição do texto de Eurípedes, Íon[19]:

Passa a infância a brincar em torno dos altares que o alimentavam, de modo que, ao chegar à idade adulta, os Délfios fizeram dele guarda do ouro do deus e fiel administrador de tudo; e no templo levou sempre até agora uma vida dedicada aos deuses.

Nos três episódios da peça, vários diálogos sugerem rumos que agravam e atenuam a dor da mãe e do filho, já que ao tomarem conhecimento do vínculo de sangue, vão retornar a Atenas com Xuto, que foi convencido pelo deus a assumir ser o verdadeiro pai de Íon.

Numerosos estudos já trataram da peça de Eurípedes com interessantes e importantes abordagens literárias, filosóficas, psicanalíticas, jurídicas, falando da relação dos deuses com os mortais, do abuso/estupro sofrido por Creúsa, da injustiça, do abandono, maternidade e paternidade, compaixão, verdades, falsidades, mentiras, enganos, segredos, partindo sempre da riqueza textual que Íon oferece ao leitor. As possibilidades de olhar o mundo e algumas de suas especificidades sob as falas escritas por Eurípedes traçam situações que foram analisadas sob as mais diversas óticas. Os segredos, omissões, falsidades, meias-verdades imporão um manto de incertezas durante o transcorrer da peça, apesar do reencontro de mãe e filho em Delfos, pois esse reencontro cria um problema em vez de uma solução para a sucessão política, já que Atenas tinha uma legislação específica em relação aos estrangeiros, pois eles não tinham os mesmos direitos dos nascidos em Atenas. Tal previsão incluía os ascendentes, caso de Xuto, um não-ateniense que assume a paternidade de Íon a mando do deus, ao sair do templo.

Michel Foucault[20], numa de suas aulas, também analisará essa situação quando afirma que Eurípedes sugere na peça que o pertencimento à terra assegura ao cidadão ateniense o exercício da parresía, o exercício do poder de dizer a verdade para tentar fazer prevalecer seu pensamento na pólis.

A paternidade e a maternidade como elementos fundamentais autóctones para se ter direitos em Atenas nos leva a reforçar que o percurso da ideia deste texto buscou instrumental analítico na Psicanálise, na Filosofia, e na Semiótica, a partir das leituras do Teatro, buscando depois um viés jurídico. Importante esclarecer que tais leituras são feitas para que se possa verificar se o que pensamos a partir delas embasa o que propomos como análise neste artigo, que são as posturas pessoais de agentes públicos e privados que mantêm relação contratual ou pessoal com membros dos poderes do Estado numa relação análoga ao estupro de Apolo em Creúsa. Todas essas intersecções, portanto, se aglutinam para a análise de um comportamento específico de pessoas que trabalham na e para a Administração Pública, e que acreditam ter algo em comum, em sua origem, que os permita agir como deuses.

Desse modo, o primeiro momento deste texto é construído a partir das leituras que foram feitas também como opção acadêmica e pedagógica, para chegarmos a alguma interpretação ligada às formas legítimas de se chegar à parresía, ao “dizer-a-verdade”. Verdade ou falsidade, mentira ou segredo corresponderão a um efeito da interpretação de nossas leituras de textos teóricos, dos diálogos na peça, e também nos depoimentos que lemos e ouvimos nas mais diversas mídias de parte dos envolvidos em esquemas fraudulentos de licitações, obras, e de caixa dois para financiamento de campanhas a cargos eletivos.

Há então um primeiro momento de construção textual no qual não são levadas em consideração as condições sociais, antropológicas, econômicas, dentre outras externas às ações sob investigação, às quais está submetido o portador do Complexo de Apolo. Antes, portanto, Íon servirá à abordagem conceitual de poder, verdade, falsidade para, depois, jogá-la à luz dos princípios constitucionais.

A última frase do coro na peça nos sugere um destino oracular (versos 1621-1622) (i) na tradução de Jaa Torrano: “Os honestos por fim obtêm dignas sortes, e os maus, quais são, nunca estariam bem”; e (ii) na tradução de Frederico Lourenço “[...] os bons encontrarão no fim as coisas de que são dignos; os maus, visto que assim nasceram, nunca poderão ser bem-sucedidos”.

A fala do coro serve como um dos pontos de análise deste texto, e vem do fato de Íon, depois de descobrir que é filho de Creúsa, “conhecer e aceitar” sua origem impura, já que sua mãe é ateniense e Xuto, seu verossímil, mas falso pai designado por Apolo, é estrangeiro. Isso porque, como veremos, “nunca estar bem” ou não “ser bem-sucedido” poderá estar ligado à origem, à ascendência de Íon, à autoctonia. Para deixar um caráter duvidoso para o final, os episódios da peça deixam as próprias personagens refletirem sem saber a verdade por inteiro, ou sabendo meias-verdades. Senão, vejamos o que Eurípedes nos oferece na leitura:

a) O estupro sofrido por Creúsa é um segredo, e a criança fruto do coito forçado foi abandonada à morte;

b) Creúsa vai a Delfos com seu marido, Xuto, para consultar o oráculo, preocupada com a sucessão em Atenas;

c) Xuto sai do templo como pai daquele que primeiro encontrar. Apolo, que ordenara a falsa paternidade, sabia que seria Íon;

d) Íon aceita a situação, uma espécie de “arranjo”, mas ainda não sabe quem é sua mãe, apenas desejando que ela seja ateniense;

e) Creúsa, depois que Xuto assume a paternidade, e enquanto não sabe que é a verdadeira mãe de Íon, teima em não o aceitá-lo como filho do marido, pois naquele momento acredita que Íon é filho natural dele. Na peça ela se irrita por entender que essa situação é uma ameaça ao seu poder e controle da família, além de colocar em risco a sucessão em Atenas;

d) Juntando esse jogo de “esconde-esconde” e de meias verdades, Creúsa acaba por descobrir que Íon é fruto do estupro e revela a ele, que não acredita, que seu verdadeiro pai é Apolo. Diante da dúvida de Íon e de seu desejo de entrar no templo para confirmar a história surge Atena para corroborar o que lhe fora narrado (verso 1560) devendo, porém, guardar essa informação como segredo.

O segundo momento é o da abordagem de um tipo específico de poder político ou de uso da política como um esquema inevitável de dominação perpetrado por agentes públicos, eleitos ou escolhidos, desembocando nas suas posturas ilegais. Tais posturas estão calcadas como se estivessem sob vestes de um deus – tanto no momento da ilegalidade quanto na tentativa de perpetuação da falsidade-fraude no tempo –, que acreditam ser. O Complexo de Apolo é esse “sentimento inconsciente” – para usar o termo de Sigmund Freud quando trata do Complexo de castração[21] –, de não se sentir ameaçado ao usar a falsidade para estuprar a sociedade e o Estado.

Portanto, reafirmamos as trilhas que este texto percorre:

a) primeiro, das leituras cruzadas de Filosofia, Semiótica e Psicanálise em relação a Íon numa abordagem conceitual, sua interpretação e sua função no mundo do dever-ser; e

b) segundo, a partir dessa abordagem, o suporte para analisar, no mundo real, o Complexo de Apolo, sentimento que transformado em ação começa por ferir os princípios constitucionais da Administração Pública.

           

3. Autoctonia e o Complexo de Apolo: a sociedade e o Estado estuprados

 

A atualidade dos elementos propostos em Íon em relação ao Complexo de Apolo vem das leituras a partir das análises feitas por Michel Foucault em suas aulas dos dias 5 de janeiro (primeira hora); 12 de janeiro (segunda hora) e 19 de janeiro (primeira e segunda horas) de 1983, no Curso do Collège de France (1982-1983)[22], e das leituras de Psicanálise e Semiótica já citadas, que podem nos esclarecer ou tornar a reflexão mais espessa na tentativa de dissipar, como escreveu Todorov.

Retomando a fala final do Coro ao término da peça, notamos que Íon precisa ser filho de Atenas para poder ter os direitos de um cidadão ateniense, não podendo ter mistura estrangeira na ascendência (lembremo-nos que Xuto é estrangeiro, mas foi aceito pelo rei Erecteu, se casando com Creúsa por ter defendido Atenas em combate); o risco de Íon é não ser nada: “[...] não serei chamado por nenhum nome”, na tradução portuguesa e “[...] serei chamado nada, não sendo nada”, na brasileira. O que fatalmente ocorrerá com ele é que não terá autoridade política como cidadão, devendo, para ser ouvido, ter que alcançar o poder pela força, de forma tirânica, ou o poder de um só, como quer Foucault.[23] Melhor seria ficar em Delfos, servindo a um deus, do que estar em Atenas e não poder dizer, pois mesmo que “[...] a lei faça dele um cidadão, sua língua continuará sendo serva”. [24]

A preocupação de Íon vem do fato de que Atenas possuía uma legislação própria que

[...] não reconhecia o direito de cidadania aos filhos nascidos de um pai ateniense, mas de mãe não ateniense. Em outras palavras, a dupla ascendência ateniense era requerida desde meados do século V. Essa legislação extremamente severa, típica mais uma vez de Atenas, tinha por objetivo evitar a inflação do número de cidadãos.[25]

Michel Foucault expõe na aula do dia 19, na segunda hora:

Em torno de Íon, do nascimento de Íon, tivemos Creusa, que efetuou um ligeiro deslocamento de verdade, ao pretender que sua irmã é que foi seduzida por Apolo; o deus, que por vergonha não quis dar a resposta verdadeira e indicou a Xuto um filho que na realidade não é o dele; e Xuto, que de certo modo por negligência, se contenta com verdades que são, a bem dizer, verossímeis mas que não são realmente estabelecidas. E então é esse jogo de meias mentiras, meias verdades, aproximações, é esse jogo que Íon recusa. [...] ele quer fundar seu direito, fundar seu direito político em Atenas.[26]

Portanto, a origem ligada à terra é fator fundamental para que Íon tenha autoridade e não seja o nada, como ele mesmo diz. Ele quer “[...] fazer parte daqueles que ocupam uma posição principal na cidade”.[27]

Se para Íon o poder político só poderia ser alcançado como ateniense puro, legitimado para o exercício do poder, a ideia de alcançar esse poder via tirania ou monarquia, não lhe interessava. Interessa a ele “ocupar a primeira fileira”. A primeira fileira pertence às pessoas importantes, àqueles que ocupam uma posição principal na cidade.

Reforçamos a opção pela tradução brasileira da edição do livro de Michel Foucault em relação a algumas frases de Íon, por acreditarmos serem mais próximas em relação às argumentações deste texto.

Na peça, Xuto se dirige a Íon quando sai do templo, depois de consultar Apolo; é nesse momento que ele diz a Íon que é seu pai; Íon ainda não sabe que Creúsa é sua mãe. Ou seja, a reflexão e o desenvolvimento do episódio, nessa parte, é fruto do desconhecimento de Íon que sua mãe é ateniense. Por isso fala (e essa fala está na primeira epígrafe, verso 670) que tem o desejo de ter uma mãe ateniense, porque quer ter seu “direito” de falar em Atenas e alcançar o poder de forma natural. Por isso a frase no livro da edição brasileira de Foucault nos serve melhor.

As traduções brasileira e portuguesa não sustentam nosso argumento nessa parte. Pois a brasileira traz assim os versos (595 a 597): “Se impelido a primeiro posto na urbe, tento ser alguém, pelos incapazes sim serei odiado, pois o poder aflige” e na portuguesa: “serei detestado por todos aqueles que nunca poderão chegar ao poder. Pois a superioridade é sempre melindrosa”.

Pela leitura das duas traduções – as duas diretamente do grego, utilizando o texto estabelecido por J. Diggle [28] – percebem-se diferenças que, cremos, relacionam-se às opções dos tradutores e às diferenças de fala e escrita da língua portuguesa em Portugal e no Brasil. Não é a missão deste texto comparar traduções e/ou analisar as opções em função das diferenças semânticas, linguísticas ou de qualquer outra ordem. Porém, e excepcionalmente, em relação ao verso 595, usamos a tradução sugerida pelo tradutor brasileiro na obra O governo de si e dos outros, de Michel Foucault, da palavra rang, em francês, e traduzida por fileira. Esse é o trecho na edição francesa de Le gouvernement de soi e de autres: “Il dit: Si je veux atendre le premier rang (eis tò prôton zugon: pour le premier rang).[29]

Cremos que a atitude de Apolo ao forçar a relação sexual com Creúsa dá à peça e a nós, leitores, a possibilidade do que se poderia pensar a respeito do papel a ser assumido por Íon. Ele, em verdade, quer a cidadania, mas não só ela. Quer o poder do dizer verdadeiro, do dizer-a-verdade, da parresía.

Dado que a lei é igual para todos (princípio da isonomia), dado que cada um tem o direito de voto e de externar sua opinião (isegoria), quem vai ter a possibilidade e o direito da parresía, isto é, de se levantar, de tomar a palavra, de tentar persuadir o povo, de tentar prevalecer sobre os rivais – com risco, quanto ao mais, de perder com isso o direito de viver em Atenas, como ocorre quando há o exílio, o ostracismo de um líder político –, ou eventualmente arriscar sua própria vida? [...] Eurípedes não quer de forma alguma propor em Íon uma solução constitucional para dizer quem deve exercer a parresía, mas vê-se muito bem em que contexto ele formula essa questão da parresía: quando, como o texto mostra muito bem, a parresía não pode ser herdada como um poder violento e tirânico, [...]. O que Eurípedes sugere é que o pertencimento à terra, a autoctonia, esse arraigamento histórico num território vai assegurar ao indivíduo o exercício dessa parresía.  [...] Com efeito, creio que essa peça respondia imediatamente a um problema político preciso [e] que ela é ao mesmo tempo o drama grego sobre a história política do dizer-a-verdade, sobre a fundação, lendária e verdadeira ao mesmo tempo, do dizer-a-verdade na ordem da política.[30]

Parece óbvio que Íon se encontra nessa estranha situação – e Eurípedes nos “joga” qual seria a melhor escolha: tentar alcançar o poder com legitimação, já que é filho de uma ateniense apesar de pai não ateniense, mas continuar “servo da língua”, ou permanecer em Delfos, o que, ao que parece, não ocorrerá.

Toda a complexidade da situação em relação a Íon vem do estupro e da falsidade e do segredo em relação à sua paternidade.

Devemos lembrar sempre que Xuto, ao sair do templo de Apolo sai com a falsidade de assumir a paternidade do filho que não é seu. Desse modo, o deus mentiu para conformar e contornar uma situação que ele mesmo criara. Ao não deixar Íon morrer na gruta pelas mãos de Hermes, que foi buscá-lo, talvez não tenha se dado conta do que poderia acontecer. A ida de Creúsa e Xuto ao oráculo, por não poderem gerar novos filhos, se dera em função da transmissão do poder em Atenas, e esse é, digamos, o acontecimento inicial da peça, que faz com que a história se desenrole com a falsidade verossímil da paternidade de Íon.

Apolo, por ser um deus, subjugara Creúsa. Assim “[...] à força, Febo atrelou Creúsa, filha de Erecteu, ao jugo conjugal, [...]” [31] conta Hermes, irmão de Apolo, no início de Íon.

Algumas dessas atitudes mostram como o destino de Íon pode ser mais complicado do que se imagina, já que sua mãe se silencia – só revela seu segredo quase no final da peça – sobre o estupro de que é vítima e a consequente ausência de Apolo como pai. Tal ausência, cremos, faz com que Eurípedes não coloque falas na personagem, mas não o impossibilita de ser um “provedor” oculto de Íon.

Dentre as muitas reflexões a partir da leitura e análise de Íon, citaremos uma de viés psicanalítico, a partir do silêncio de Creúsa sobre o filho, uma “fantasia ideológica”, para utilizar o termo empregado por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, em seu texto “Íon, de Eurípides, um ‘broto’ legal”:

A expressão “fantasia ideológica”, aqui empregada da forma como o faço, ao que me consta, e segundo Richard Rader, foi cunhada pelo filósofo Slavoj Žižek; [...]

Antecipo, entretanto, que não pretendo discutir o pensamento do filósofo, mas tão somente observar no nosso dia a dia como vivemos a realidade proposta na tragédia “Íon”, isto é, como lidamos com a violência que gera frutos que ignoramos, abandonamos e escondemos numa gruta escura; e como, com esse modo de ser, geramos em nós o desconforto de uma perda mal resolvida, preenchida pela assunção de um discurso coletivo, conceitual e igual para todos, um discurso que tomamos por verdade e que dirige nossos desejos. Objetivamente, refiro-me ao coito indesejado de Creúsa com Apolo; à fecundação inconveniente, ao nascimento seguido de ékthesis, isto é, da exposição do menino que vem das Penhas Altas; e, finalmente, ao mito do homem nascido da terra, solução ideológica denominada autoctonia, que incide sobre Creúsa e, consequentemente, sobre Íon, e que colide com a bastardia real do rapaz: para todos, ele é nascido de um pai desconhecido.

Nesse sentido, pela autoctonia, Íon é um “broto legal”, uma semente que brotou da terra (corpo feminino de Creúsa) ateniense, isto é, um fruto legítimo filho de uma cidadã da cidade de Atenas; contudo, no sentido físico e carnal, como filho de Creúsa e Apolo, um pai ausente, Íon é ilegítimo, um broto ilegal que merece, segundo a lógica aplicada na pólis antiga, ser podado; pelo menos é o que afirmam os fragmentos das inscrições de Cós n. 367 e 368 catalogados por William Paton e Edward Hicks. Neles, pode-se ler um decreto que ordenava aos cidadãos do lugar informar, por escrito, aos guardiões do templo, os nomes das crianças, o nome próprio do pai, da família de origem e da mãe, devendo-se registrar, ainda, de quem esta era filha (Paton & Hicks, 1891; Rose, 1926, pp. 213-244). O decreto reforça a importância do nascimento legítimo, para cuja confirmação era necessário identificar o pai e dar à mãe um atestado de existência, a saber, de legitimidade, por meio da cidadania dela por parte de pai (Rose, 1926, p. 216). Desse modo, parece razoável afirmar que “os filhos nascidos de casamentos mistos não teriam acesso aos direitos cívicos, ao menos na sua totalidade...” Mas não há — desde a antiguidade — quem não se arranje com as construções discursivas e virtuais; assim como se podem adequar as coisas e tomar o café da manhã descafeinado ou a cervejinha da tarde sem álcool... [32]


 

A atualidade indicada por Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa, ao analisar o texto sob o viés da maternidade e da ausência do pai nos dá, juntamente com a leitura de Michel Foucault, a possibilidade de uma reflexão que traz, no nosso entendimento e a partir do estupro de Apolo, uma das trilhas para o que pensamos neste artigo. Afinal, o estupro seguido do nascimento e sobrevivência da criança coloca Apolo como aquele que age errado e que para “consertar” seu ato se utiliza de possibilidades que são verossímeis, mas falsas (é verossímil que Xuto seja o pai de Íon, mas é totalmente falso).

            Desse modo, e trazendo analogamente a postura endeusada para a atualidade de nosso cotidiano, o Complexo de Apolo surge na motivação que tenta perpetuar as ações ilegais quando os agentes dessa mesma ação – num jogo de arranjos discursivos e virtuais – tentam mostrar que a falsidade, quando descoberta e vinda a público, se reveste de uma verossimilhança que ajude a convencer a sociedade de sua legitimidade; o caminho que deságua na tentativa de perpetuação da falsidade vem do estupro de Apolo, da falsidade da paternidade de Íon e do seu desejo de ter o direito político de dizer-a-verdade.

Assim como no desejo de Íon de buscar a primeira fileira para ocupar uma posição principal, muitos agentes públicos, empresários, executivos – ou em verdade qualquer outra pessoa –, ao quererem ter esse mesmo sonho da “primeira fileira”, o fazem a partir de ações tirânicas – o poder de um só –, ocupando o lugar sem ter conquistado o direito de ocupá-lo dizendo-a-verdade, sem a parresía.

Atualmente, o estuprador do Estado tem um pretenso poder de um deus, porque conhece bem os meandros não da atividade de onde surgirá a ilegalidade, mas de como criar discursos verossímeis, porém falsos, como o da paternidade e dos arranjos de Apolo, Íon, Creúsa e Xuto.

Não cremos ser necessário trazer exemplos, mas é possível verificar, porque amplamente divulgadas nos meios de comunicação e confirmadas por muitos de seus partícipes e pelos resultados obtidos, muitas histórias ligadas a fraudes em licitações, superfaturamento de obras, caixa dois, estranhas decisões judiciais, criação de leis casuísticas para resolver determinadas situações, omissão de órgãos e entidades responsáveis por fiscalização, em preocupantes representações (in)conscientes do Complexo de Apolo.

Aqueles que se utilizam do público como se privado fosse manipulam dados e oferecem soluções plausíveis para o que forjaram como verdadeiro, num esquema de corrupção de uso particular dos recursos públicos, sendo que no mais das vezes se sentem longe das teias da justiça. Os deuses terrenos, pequenos Apolos, agem como se a “estrutura-oráculo” da Administração Pública fosse o templo onde selassem o destino dos humanos, servindo ainda de extensão de suas contas-correntes e fazendo a sociedade refém de seu próprio destino.

A procedência daqueles que estupram a sociedade é a mesma da sociedade estuprada. Não é difícil verificar que tanto os membros dos Poderes Executivo (incluídas as Administrações Públicas direta e indireta), Legislativo e Judiciário quanto aqueles da iniciativa privada, bem como os administrados possuem origem idêntica. Assim, a autoctonia – utilizada aqui tão-somente para designar a sociedade que se tem como origem – será o fator preponderante para a ação dos portadores do Complexo de Apolo.

Esclarece-se que este pequeno estudo não identifica as condições sociais como determinantes para aqueles que agem como “estupradores”, mas, de alguma forma, existem situações que os predispõe a uma espécie de um falso senso comum. Frases como “se não oferecer uma quantia por fora não sai negócio” ou “é comum o caixa dois” ou ainda “é prática usual para o empresário oferecer dinheiro por fora para conseguir o contrato”, incluídas as fraudes constantes em processos de licitação, acabam por virar prática e aceitas pelo grupo espúrio que detém poder na Administração bem como do particular que mantém com ela negócios contratuais ou que precisam de um serviço público.

 

4. O Complexo de Apolo e o desrespeito aos princípios constitucionais da Administração Pública

 

As ações implementadas pelos portadores do Complexo de Apolo desrespeitam os princípios constitucionais que norteiam o exercício do poder.

A motivação dos atos dos agentes públicos para a efetivação do estupro – em coautoria com pessoas físicas e/ou jurídicas da iniciativa privada – torna vítima a sociedade à qual eles próprios pertencem e desrespeita o regime jurídico ao qual estão submetidos. Desse modo, efetivado o ato criminoso, não só conseguem inviabilizar as metas de implementação de políticas públicas como transformam tais políticas em “políticas governamentais casuísticas”; além disso, fazem sangrar o Estado desviando recursos financeiros, simplificam os processos de licitação e diminuem as exigências constitucionais e legais do licenciamento ambiental para obras de programas governamentais que exijam grandes intervenções antrópicas. Podemos identificar que a motivação desses atos terá origem – além da tendência pessoal ao estupro – na politização das políticas públicas.

Devemos ainda lembrar que o financiamento por parte de bancos públicos, para incremento e desenvolvimento de empresas nacionais, envolve operações financeiras que deveriam contribuir para o desenvolvimento do país; porém esbarram na motivação política direcionando valores vultosos a pessoas específicas, desobedecendo o papel social do banco, em troca do retorno financeiro para os agentes ou para financiamento de campanhas políticas.

O caráter político dos atos de decisão tanto da Administração Pública quanto dos bancos públicos afasta a ação do agente da finalidade pública. Hely Lopes Meirelles mostra bem a diferença de um ato que busque a finalidade pública daquele em que seja lícito que a pretensão particular possa gerar negócio com a Administração, sempre em nome do interesse público. Desse modo, coloca, ipsis litteris:

Desde que o princípio da finalidade exige que o ato seja praticado sempre com finalidade pública, o administrador fica impedido de buscar outro objetivo ou de praticá-lo no interesse próprio ou de terceiros. Pode, entretanto, o interesse público coincidir com o de particulares, como ocorre normalmente nos atos administrativos negociais e nos contratos públicos, casos em que é lícito conjugar a pretensão do particular com o interesse coletivo.

O que o princípio da finalidade veda é a prática de ato administrativo sem interesse público ou conveniência para a Administração, visando unicamente a satisfazer interesses privados, por favoritismo ou perseguição dos agentes governamentais, sob a forma de desvio de finalidade. Esse desvio de conduta dos agentes públicos constitui uma das mais insidiosas modalidades de abuso de poder.[33]

 

Os atos praticados que se afastam da finalidade pública, como vimos acima, têm origem numa normatização que facilita o abuso. Tais normas, ao nosso entendimento, mudam o eixo ligado à finalidade pública para outro, de “políticas governamentais casuísticas”. Assim, a politização da ação administrativa que se constitui na “ insidiosa modalidade de abuso de poder”, como afirma Meirelles, será um dentre outros fatos geradores que desaguarão no Complexo de Apolo.

Por outro lado, e como efeito das mudanças de caráter político da Administração Pública, muitos dos projetos de lei se originam dessas decisões políticas, e a lei a ser votada e promulgada terá em seu texto uma decisão governamental que obedecerá a critérios estranhos à finalidade pública. Afinal, será nos órgãos administrativos da burocracia estatal que serão feitos os estudos técnicos e financeiros demonstrando a eficácia do projeto de lei a ser enviado ao Poder Legislativo. E será também nesses mesmos órgãos administrativos, que elaboraram os estudos, que a prática advinda da lei pode ser transformada em atos e contratos verossímeis, mas falsos em sua execução mesmo porque

Na era contemporânea, aumentou a importância da atividade administrativa na dinâmica do Estado, e uma das consequências disso é a participação de servidores (isto é, na chamada burocracia) em atividades que seriam típicas de governo, tais como a fixação do teor de regulamentos e decretos, apresentação de propostas que se transformam em realização concreta ou ato normativo.[34]

 O comentário de Odete Medauar – imaginado por hipótese num ambiente de desvio de finalidade – nos alerta e ao mesmo tempo nos dá a dimensão de como leis casuísticas geram regulamentos e decretos casuísticos. Aí está mais uma motivação do Complexo de Apolo: “preparar o terreno” com a verossímil, mas falsa finalidade coletiva, para a capitulação da sociedade e do Estado em benefício de poucos. Falsear, sob o manto do interesse coletivo, a supremacia ou preponderância[35] do interesse público sobre o privado sem obediência aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade.

Celso Antonio Bandeira de Mello[36] define o interesse público como

o interesse do todo, do conjunto social, [...] a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no Estado).

 Ainda segundo seu entendimento, o interesse público “só se justifica na medida em que se constitui em veículo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que o integrarão no futuro”[37]. E as prerrogativas inerentes à preponderância do interesse público sobre o privado só adquirem legitimidade na medida em que visam alcançá-lo, “não para satisfazer apenas interesses ou conveniências tão só do aparelho estatal, e muito menos dos agentes governamentais”[38].

A leitura do Título II da Constituição Federal “Dos direitos e garantias fundamentais”, com o Capítulo I “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, que antecede o art. 5º nos adverte que a diretriz constitucional adotada deve proteger os direitos individuais a partir da predominância dos direitos coletivos advindos da finalidade pública. Assim, o direito à saúde ou ao meio ambiente ecologicamente equilibrado direcionam o que, coletivamente, deve ser garantido à sociedade para que o exercício do direito individual tenha efetividade e seja democraticamente generalizado. Porém, como a Administração Pública detém e distribui poderes que serão exercidos por seus agentes, os que forem portadores do Complexo de Apolo, por razões de origem, autoctonia, irão individualizar interesses e conveniências. Nesse caso, as restrições relativas à ação desses agentes – e que não são obedecidas –, como a observância da finalidade pública e os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência serão meros disfarces aparentemente verdadeiros para os estupros cometidos contra a sociedade e o Estado.

Reafirmamos que tais estupros vêm dos abuso e desvio de poder e da finalidade pública, e afastam o Estado das políticas públicas garantidoras do bem comum. A prevalência dos direitos coletivos se transformam em prevalência dos direitos individuais e familiares dos complexados. Se verificarmos que a subordinação da atividade administrativa é adstrita às diretrizes da Constituição Federal e à legislação específica temos duas circunstâncias que ajudariam a evitar os estupros: (i) controlar o casuísmo nefasto de alguns processos legislativos e sua respectiva regulamentação sempre oriunda dos órgãos burocráticos da Administração Pública; e (ii) controle externo eficaz, tanto administrativo quanto jurisdicional, das atividades, atos e contratos da Administração. Sem isso não há estrutura de governo que combata e elimine a motivação dos estupros.

            Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que o interesse público, fixado na lei, não está à disposição da vontade do administrador, pelo contrário, apresenta-se para ele sob a forma de um comando[39]. O doutrinador afirma, ainda, ao tratar sobre o princípio do controle jurisdicional dos atos administrativos, que de nada adiantaria o assujeitamento da Administração Pública à Constituição e às leis, o que é da essência do Estado de Direito,

“se não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contrastar seus atos com as exigências dela decorrentes, obter-lhes a fulminação quando inválidos e as reparações patrimoniais cabíveis”[40].

 

No Brasil, em que se adotou o sistema anglo-americano, com unidade de jurisdição, cabe exclusivamente ao Poder Judiciário o exercício pleno da atividade jurisdicional. Daí se infere que:

Ato algum escapa ao controle do Judiciário, pois nenhuma ameaça ou lesão de direito pode ser subtraída à sua apreciação (art. 5º, XXXV, da CF/88). Assim, todo e qualquer comportamento da Administração Pública que se faça gravoso a direito pode ser fulminado pelo Poder Judiciário, sem prejuízo das reparações patrimoniais cabíveis.[41]

           

A retomada da finalidade pública e do interesse coletivo como diretrizes de Estado a serem seguidas – tendo como limites os princípios do art. 37 da Constituição Federal e das garantias e direitos individuais –, levam efetividade à normatização criada a partir de estudos vinculados aos reais interesses da sociedade. Três pontos, em princípio, devem nortear a retomada; (i) projetos de lei oriundos de percepções sociais reais e de interesses estratégicos do Estado para fortalecimento dos direitos individuais e coletivos (ii) controles interno e externo eficazes dos atos da Administração; e (iii) afastamento, de seus cargos e funções pelas vias republicanas, dos portadores do Complexo de Apolo, que causam danos às políticas econômicas, ambientais e sociais.

Tais pontos darão início, cremos, a um processo que diminuirá as inserções criminosas aqui descritas. A sociedade, via exercício da cidadania, conhecendo seus direitos e agindo na direção da melhoria coletiva pode diminuir o aparecimento dos deuses humanos, esses Apolos oriundos da prática do levar vantagens individuais em detrimento de muitos.

 

5. Conclusão

 

Íon, quem sabe, não volte para Atenas, pois quer o poder de dizer-a-verdade, a parresía, o direito que só pode conquistar sendo ateniense puro. Mas a dúvida em relação à ação para conquistar esse direito, que teria de ser pela força, talvez o faça desistir. No texto da peça o destino parece feliz, afinal Atena acompanhará mãe e filho a seu destino. “Vamos para casa”, diz Creúsa (verso 1617), mas a última fala é do coro: “os maus, vistos que assim nasceram, nunca poderão ser bem sucedidos” (versos 1622-1623),[42] a quem se referiam?

Ao observarmos a atuação dos portadores do Complexo de Apolo verificamos que eles exercem o poder político com extrema desenvoltura e certos de que não serão percebidos. O fato de sua prática política não prescindir desse jogo de meias verdades e meias mentiras geram o estupro planejado e perpetrado na sociedade e na Administração sem que haja percepção do ato ou com percepção tardia.

O estupro análogo ao de Apolo deixa de ser crime na medida em que a frase “governar é assim” se torne verdadeira; ela ajusta o liame entre o público e o privado por meio de novos e falsos instrumentos legais e contratuais que dão caráter verossímil à fala e ação dos pequenos deuses.

Eurípedes, no Íon nos deixa o inconcluso, ou talvez uma conclusão que venha da reflexão que tantos já fizeram em seu texto. O deus “vai continuar mudo, o deus vai continuar ambíguo, o deus vai continuar envergonhado. Os homens é que vão fazer o trajeto rumo ao dizer-a-verdade [...]”[43].

A autoctonia referente ao lugar e à sociedade dos que têm o Complexo de Apolo os faz dizer-a-verdade – estando na primeira fila –, depois de utilizar meios deslegitimados e ilegais – mas muitas vezes legalizados – para alcançar o poder, sob o código moral de que não há outra maneira de governar.

O Complexo de Apolo se dá em qualquer situação quando a luta por essa primeira fila ocorre nos mais variados setores, inclusive naqueles de onde partem críticas às posturas dos estupradores.

Em quem acreditar?

Usando as palavras de Michel Foucault na sua aula, são os homens, mais uma vez, que vão fazer o trajeto rumo ao dizer-a-verdade.


 

 

Referências

BARBOSA, Teresa Virgínia Ribeiro. “Íon, de Eurípides, um ‘broto’ legal”, in BELO, Fábio (Org.). Íon, de Eurípedes: interpretações psicanalíticas. Petrópolis: KBR Editora Digital, 2016, recurso digital.

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[1] EURÍPEDES. Íon. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Colibri, 2005, verso 670, p. 74.
[2] BÍBLIA SAGRADA. Trad. Domingos Zamagna e outros. 51 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
[3] TCHEKHOV, Anton. A gaivota, Teatro I. Trad. Gabor Aranyi. Mairiporã, SP: Veredas, 1998.
[4] GOMES, Dias. O santo inquérito. 31. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
[5] IBSEN, Henrik. Um inimigo do povo. Trad. Pedro Mantiqueira. Porto Alegre: L&PM, 2011.
[6] EURÍPEDES. Íon. Trad. Frederico Lourenço. Lisboa: Colibri, 2005, verso 14, p. 40.
[7] TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.23.
[8] Cf. FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Trad. Eduardo Brandão a partir da edição estabelecida por Frédéric Gros, sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
[9] CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente e o pensar. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 15.
[10] O que pudéssemos “morder” nos levou muitas vezes a fazer diferentes anotações enquanto conversávamos. Eram pequenos e estimulantes desafios da mente vistos por suas instrumentalizações gráficas. Flechas, palavras, círculos, serpentes, asteriscos colocados no papel foram elementos de observação e estudo que muito ajudaram a buscar o fio condutor da pesquisa. Ao mesmo tempo Íon foi se mostrando um caleidoscópio repleto de direcionamentos que transformaram os muitos livros diferentes separados para leitura – além de textos esparsos, impressos e eletrônicos –, em anotações com interfaces com a Filosofia, a Psicanálise, a Semiótica e o Direito. Parte desses direcionamentos estão no texto.  (N.A.)
[11] CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente e o pensar, p. 71-99.
[12] CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: a serpente e o pensar, p. 73.
[13] ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Trad. Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, verbete “complexo”, p.123.
[14]  MATTE, Ana Cristina Fricke; LARA, Glaucia Muniz Proença. “Um panorama da semiótica Greimasiana”, in Alfa: revista de linguística. São Paulo. V. 53, nº 2, 2009, pp. 339-350. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br/alfa/article/view/2119/1737>. Acesso em:  3 maio 2017.
[15] BARBOSA, Teresa Virgínia Ribeiro. “Íon, de Eurípides, um ‘broto’ legal”, in BELO, Fábio (Org.). Íon, de Eurípedes: interpretações psicanalíticas. Petrópolis: KBR Editora Digital, 2016, recurso digital.
[16] EURÍPEDES. Íon. Trad. Jaa Torrano, in Teatro completo, Vol. II. 1. ed. São Paulo: Iluminuras, 2016, recurso eletrônico, p.1.
[17] “Tempo”, no original, quando deveria ser “Templo”. (N.A.)
[18] Nos textos traduzidos de Íon, o nome Creúsa é grafado com acento agudo na letra “ú”; já no texto traduzido das aulas de Michel Foucault Creusa é grafado sem acento. Nossa opção será grafá-lo com o acento agudo no presente artigo. (N.A.)
[19] Eurípedes. Íon, 2005, p.41.
[20] Cf. FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 98-99.
[21] Cf. ROUDINESCO, Elizabeth; PLON, Michel. “Complexo de castração” (verbete), in Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 105.
[22] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 3-103, excetuadas as páginas 25-58.
[23] Cf. FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 93.
[24] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 96.
[25] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 92.
[26] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 91.
[27] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 93.
[28] Cf. DIGGLE, J. Euripides Fabulae, Vol. II. Oxford University Press: Oxford, 1981.
[29] FOUCAULT, Michel. Le gouvernement de sois e de autres. Leçon du 19 janvier 1983. Paris: Haute études, Gallimard, Seuil, janvier, 2008, p. 93. [Tradução da edição brasileira, p. 93: “Ele diz: se eu quiser alcançar a primeira fileira (eis tò prôton zugòn: para a primeira fileira)]
[30] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 99.
[31] EURÍPEDES. Íon, 2005, verso 10, p. 40.
[32] BARBOSA, Tereza Virgínia Ribeiro. “Íon, de Eurípides, um ‘broto’ legal”, p. 1-2.
[33] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 34. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 93-94.
[34] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2015, p. 65.
[35] Por opção dos autores utilizar-se-á a palavra preponderância em vez de supremacia.
[36] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 60-61.
[37] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 62.
[38] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 73.
[39] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 78-79.
[40] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 88.
[41] BANDEIRA DE MELLO. Celso Antônio. Curso de direito administrativo, p. 89.
[42] EURÍPEDES. Íon, 2005, p. 120.
[43] FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros, p. 100.