O ser
humano diante do auto castigo.
Uma
breve abordagem do suicídio de Trepliov, em A
Gaivota,[1] de Tchekhov.
Paulo
Abrão
O que
é condição indispensável da vida não pode deixar de ser útil,
a
menos que a vida não seja mais útil.[2]
Émile
Durkhein
A
temática ligada ao suicídio é vasta. Estudos psicanalíticos, doutrina jurídica,
filosofia, religião, teatro.... As abordagens nos levam para muitos caminhos. Desde
uma discussão numa roda de amigos ou parentes ao enfrentamento humano diante de
um caso concreto, o suicídio, na maioria das vezes, nos remete a perguntas sem
respostas, mesmo que o suicida tenha deixado um bilhete, uma carta, explicando
o porquê de sua decisão.
A
dúvida persiste: “Mas era necessário? Não haveria outro caminho, outra atitude”?,
se perguntam os que vivenciam de perto ou simplesmente conversam sobre tal fato.
A chamada morte
voluntária não é considerada crime na esfera penal, mas a sanção pode alcançar
aquele que moralmente ou materialmente induz ou instiga alguém ao suicídio. O
art. 122 do Código Penal traz a previsão: “Art. 122. Induzir ou
instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe
auxílio material para que o faça”, pena de 1 a 3 anos de reclusão. Num texto
escrito em 1973, Heleno C. Fragoso escreveu sobre o suicida que deixa bilhetes
ou cartas culpando outra pessoa por sua atitude extrema:
“No que tange à prova do
crime, já se decidiu, entre nós, que ‘cartas, documentos ou bilhetes deixados
pelo suicida, antes do suicídio, nenhuma prova representam quando isolados,
pois são feitos em plena tormenta psicológica’ (RF, 161/375). Nessa matéria, no
entanto, não existem regras gerais, embora se saiba que os suicidas, em grande
número, sofrem de neuroses, psicoses ou outros graves distúrbios da personalidade. ”[3]
Uma decisão do STJ –
Superior Tribunal de Justiça traz que “(...)
os motivos que levam alguém ao suicídio se encontram num campo subjetivo, não
podendo terceiros adentrarem na esfera psicológica do falecido de modo a afirmarem
por ele as causas de tal atitude brusca”. (STJ. REsp 480.151)
Uma
dívida, um ato social reprovável, uma indiferença, um amor não correspondido,
uma doença, são razões plausíveis para acabar com a própria vida? Ou há no
suicida um encaminhar sequencial que, junto a uma angústia crescente, o
transforma num alvo de si próprio, que o faz optar pelo término da sua existência?
Nossa legislação prevê que encorajar, sugerir, estimular ou tomar a atitude
deliberada de, por exemplo, dar a alguém substância química para ser ingerida ou
uma arma carregada, sabendo que a vítima é pessoa fragilizada, depressiva, pode
ser considerado induzimento. O Direito, como regra, trabalha com essas duas
hipóteses ligadas ao induzimento ou instigação ao suicídio: estímulo, encorajamento;
ou fornecimento material dos meios para o autoflagelo.
NO
TEATRO, A DOR DE EXISTIR
No teatro, creio, o
ator que consiga meditar sobre o suicídio – no sentido de se colocar no lugar do
suicida, e não só olhar a ação como terceira pessoa, analisando a situação –
nos ajuda, como espectadores, a entender ou “adentrar”, no que Stanislávski
chamava de “adaptação”. Dizia ele:
“...
usaremos essa palavra, adaptação, para significar tanto os meios
humanos internos quanto externos, que as pessoas usam para se ajustarem umas às
outras, numa variedade de relações e, também, como auxílio para afetar um
objeto”.[4]
(p. 268)
Assim, as condições humanas, a vivência e experiência pessoais vão
determinar os meios que serão utilizados para a adaptação do ator em cena. Adaptação,
assim, pode ser representada por um agrupamento de condições internas de nossa vivência
aplicadas à personagem que se vivencia na cena. E muitas vezes sem palavras, já
que elas não “... podem esgotar todos os
matizes mais tênues das emoções que sentimos...”, afirma Stanislávski
(p.269). São os tais “pensamentos interiores” ou “sentimentos”, sem os quais o
trabalho do ator é transformado num clichê, ou num carimbo (utilizado sempre
para a mesma cena, tornando-se “surrado”).
No
caso específico do suicídio de Trepliov, razões, motes, situações, elementos
que o levaram a tirar a própria vida estão, em princípio, à disposição do
leitor e do público, pois o texto de Tchekhov nos brinda com os encantos e
desencantos daquela situação. Tentemos ver.
A
rubrica/epígrafe do Primeiro Ato informa
que está acontecendo a montagem de um espetáculo teatral. Tal espetáculo é
criação de Konstantin Gavrilovitch Trepliov, personagem-autor da peça a ser
apresentada na casa de campo da família. Sua fala contemplando o estrado que
serve de palco: “Isso que é teatro! O
pano de boca, o primeiro bastidor, o segundo bastidor, depois um espaço vazio.
Nenhum cenário! A vista se abre direto para o lago e o horizonte” (p. 9).
Ou seja, o primeiro elemento que nos leva à meditação é verificar que o teatro
que ele acredita ser verdadeiro é diferente daquele existente na época. “Precisamos de novas formas. Novas formas, e
se elas não existirem, é preferível que não haja nada...”. (p. 11)
Além
disso, Trepliov ama duas mulheres:
Arkádina, sua mãe, e Nina, a jovem que vive no campo, nos arredores da
casa da família, e que é a atriz principal da peça escrita por ele. Com a mãe a
relação é conflituosa. Ele afirma: “...
meus vinte e cinco anos a fazem lembrar sempre que não é mais jovem (...) ela
me odeia por isso” (p. 10) ... “Eu
amo minha mãe, amo muito; mas ela leva uma vida tola, anda com esse escritor, é
mimada pela imprensa – isso me cansa muito” (p.11). “Esse escritor” é uma
referência a Trigorin, escritor russo começando sua carreira e companheiro de
Arkádina.
E
com Nina, Trepliov vive um amor não correspondido.
Trepliov
tenta o suicídio uma vez. Uma das cenas mais sensíveis e agudas que já vi no
palco é aquela em que sua mãe, Arkádina, busca curar a ferida oriunda dessa
tentativa. Acredito que Tchekhov tenha colocado o suicídio tentado para criar
essa cena à qual me refiro. A tentativa gera, entre mãe e filho, um encontro tenso,
colérico, arrebatador.
Duas
situações ator/mentam Trepliov: a primeira, uma nova concepção de teatro que o
estimula a criar e escrever uma peça para Nina, mas que Arkádina não reconhece
como teatro. “Isso é algo decadente”,
diz a mãe logo no início da apresentação; e o segundo, o amor às duas mulheres
que o angustiam, já que Nina se apaixona por Trigorin, que é o escritor-parceiro
de Arkádina.
Arkádina
é atriz famosa, reverenciada na sociedade russa, e zomba do envolvimento de
Trigorin com Nina: “O amor de uma moça do
interior? Oh, como você se conhece pouco”, provoca a atriz (p.46).
O
destino das quatro personagens: Trigorin e Arkádina permanecem juntos, Nina se
torna uma atriz e Trepliov se suicida. Ele amava Nina, que amava Trigorin, que
não sabia se amava realmente alguém... e Arkádina, que amava o teatro. Angustiado
e melancólico por não ter o amor de Nina e o de sua mãe, e por seu teatro não
ser reconhecido, acaba com a própria vida. “Estou
sozinho, nenhum afeto me aquece, sinto frio, como se vivesse debaixo da terra,
e tudo que escrevo é seco, sem vida e sombrio”, confessa a Nina pouco antes
do suicídio. (p. 63)
Assim,
Tchekhov “soluciona” o conflito. Não coloca nas mãos de outra personagem a arma
que mata. Trepliov é levado ao suicídio por se sentir desprezado por Nina e por
sua mãe. Além, ele odeia Trigorin, que lhe “roubou” seu eterno amor...
Amores
roubados e um jogo de poder enfeixam as relações que seriam simplesmente duas
na visão de Trepliov: ele e Nina de um lado; Arkádina e Trigorin de outro. O
mundo de Trepliov só comporta isso. Não há lugar para um terceiro numa relação
a dois.
Ao
ler o texto da peça é possível pensar que a falta do amor de Nina – que mantém
por um tempo uma relação com Trigorin –, e o não reconhecimento de sua arte
pela mãe e pela sociedade russa possam ter levado, induzido, instigado a
personagem ao suicídio?
Trepliov
não deixou carta nem bilhete; não disse palavra antes do ato extremo. “Saiu de
cena” sozinho na cena de outros, deixando como prova ao espectador o som de um
tiro. Ele estava atrás da coxia, num dos aposentos da casa de Arkádina. Nina, a
Mãe e o novo teatro o confortariam. Mas foram condutores do desprezo por si.
Fica
a pergunta: A angústia o levou ao suicídio? O desprazer suplantou o prazer e
emitiu um sinal naquela tentativa frustrada? Tchekhov, me parece, desprezou propositalmente
o sinal em seu texto e deu a Trepliov a oportunidade de “sair de cena”,
aplicando um auto castigo.
Ao
espectador e ao leitor fica o que não foi dito nas cenas. Ainda bem.
[1] Edição utilizada: TCHEKHOV, Anton. A gaivota. Trad. Gabor Aranyi. Veredas, Mairiporã, SP, 1998.
[2] DURKHEIM, Émile. O suicídio. Trad. Monica
Stahel. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 473.
[3] http://www.fragoso.com.br/ptbr/arq_pdf/direito_penal/conteudos/RDP11-12.pdf,
p. 35-47, acesso em 22 ago 2016.
[4] STANISLÁVSKI, Constantin. A preparação do ator, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 29 ed., 2012.
Crédito da imagem: https://www.deutschlandfunkkultur.de/russen-muessen-immer-singen.1013.de.html?dram:article_id=171384, acesso em 30 mar 2021rticle_id=171384